Quanto engano, né, Camões?

EU PERGUNTO:

Abrir o jornal ou ligar a TV após a novela —
Que pode haver que nos cause tantas tristezas de tabela?
Não há nem como nos refugiar num pretenso
“Eu não me engano, só sei acertar!”
Nossa consciência adora o sono,
Mesmo que seja este abandono de sonhar
Que só os outros estão a errar.
Tô de saco cheio das mentiras do Censo,
Dos políticos, dos secularistas,
Dos professores, dos jornalistas,
Do governo que nos aperta.
Diante desses bostas,
Levando da vida safanões,
E com as mãos da mente amarradas às costas,
Só nos resta indagar:
Quem enfim algo acerta,
Ó meu caro Camões?

___________
RESPONDE CAMÕES:

Mundo, se te conhecemos,
porque tanto desejamos
teus enganos?
E, se assi te queremos,
mui sem causa nos queixamos
de teus danos.

Tu não enganas ninguém,
pois a quem te desejar
vamos que danas;
se te querem qual te vem,
se se querem enganar,
ninguém enganas.

Vejam-se os bens que tiveram
os que mais em alcançar-te
se esmeraram;
que uns, vivendo, não viveram,
e os outros, só com deixar-te,
descansaram.

E se esta tão clara fé
te aclara teus enganos,
desengana;
sobejamente mal vê
quem, com tantos desenganos,
se engana

Mas como tu sempre mores
no engano em que andamos
e que vemos,
não cremos o que tu podes,
senão o que desejamos
e queremos.

Nada te pode estimar
quem bem quiser estimar-te
e conhecer-te;
que em te perder ou ganhar,
o mais seguro ganhar-te
é perder-te.

E quem em ti determina
descanso poder achar,
saiba que erra;
que sendo a alma divina,
não a pode descansar
nada da terra.

Nacemos pera morrer,
morremos pera ter vida,
em ti morrendo.
O mais certo é merecer
nós a vida conhecida,
cá vivendo.

Enfim, mundo, és estalagem
em que pousam nossas vidas
de corrida;
de ti levam de passagem
ser bem ou mal recebidas
na outra vida.

(Camões, o rei dos outsiders.)

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