Pão em coreano

Em São Paulo, na mesma semana em que assisti ao filme coreano Casa Vazia, de Kim-ki Duk, fui a uma festa com Sunami Chun, diretor-presidente da Monkey Lan House. Lá, Chun me apresentou “Marcelo”, assim entre aspas porque, na verdade, “Marcelo” era da Coréia do Sul e, depois de quase dois anos no Brasil, decidiu adotar um nome que, além de ser “sexy para as mulheres”, não fosse impronunciável por seus amigos brasileiros. Misturando português com um tanto de inglês (de Tarzã, o meu), conversamos longo tempo sobre seu país, seu cinema atual, sua história, a língua, a influência chinesa, japonesa, portuguesa e assim por diante. Porém, como neste exato momento estou com meu módulo baiano ativado, e por isso estou com uma preguiça de rachar o chão, me limitarei a descrever apenas alguns pontos desse papo. (Atenção, baianos, não estou sendo preconceituoso: realmente herdei alguns legítimos genes baianos dos meus avós paternos e, tanto como o Caymmi, sei do que falo.)

Seul é uma cidade praticamente do tamanho de São Paulo, com cerca de 10 milhões de habitantes e uma área metropolitana com 20 milhões, mas com uma grande diferença: lá você não vê miséria, pobreza, favelas. Trata-se duma enorme cidade de classe média, em toda a sua gama de sutis diferenças. Cheguei a imaginar um experimento científico para uma dessas pessoas que acreditam ser a violência um fruto exclusivo da pobreza: passar alguns meses atravessando a cidade, de ponta a ponta, a pé. Caso o hipotético cientista encontre playbadboys semelhantes aos que encontrei na Vila Madalena, o resultado haverá de ser dos mais interessantes…

Ao pensar nessa travessia, imaginei o que esse peregrino poderia comer. “Pão, claro”, concluí, “ninguém pode negar pão a um peregrino”. Então indaguei ao Marcelo:

“Como se diz pão em coreano?”

“Pão.”

“Sim, pão, como se diz?”

“Pão.”

“Pois é, pão, como digo pão em coreano?”

“Já disse: pão.”

“Pão?! A mesma palavra?”

“Sim, foram os portugueses que, no século XVI, ensinaram os coreanos a fazer pão.”

E ele disse que há um outro pão, chamado “castero”, também herdado dos navegantes lusos: “Os coreanos provaram um pão de sabor e formato diferente, mais caprichado, e então perguntaram aos portugueses: ‘e este, como se chama?’, e apontaram para a iguaria. Os portugueses, acreditando que gostariam de saber que forma o pão imitava responderam: ‘Castelo’. Incapazes de pronunciar a letra ele, repetiram: ‘Castero’. E assim se chama o tal pão até hoje, inclusive no Japão.

Marcelo contou ainda sobre o primeiro contato dos coreanos com o cigarro, também levado pelos portugueses. No começo, achavam que era um remédio e os pais, quando uma criança tinha dor de dente, dor de cabeça ou algo assim, deixavam-na dar uma tragadinha.

“Você, que não é adicto, já deve ter notado que, quando um não-fumante dá uma tragada num cigarro, sente então uma tontura, uma zonzeira agradável. Para os coreanos, o cigarro era uma espécie de anestésico. Hoje, com exceção das mulheres, todos os coreanos fumam. Cigarro, lá, é considerado coisa de homem. (Não pensei em dizer isto naquele momento, mas será que, na Coréia, apenas os homens precisam se anestesiar?)

O cigarro também lhe trouxera seu primeiro choque cultural logo que chegou ao Brasil. Foi comprar um maço e, já no quarto do hotel, ao abri-lo deu com a foto horrenda dum feto destroçado pela mãe fumante: soltou um grito contido e deixou a caixa ir ao chão. “Gente mais estranha”, pensou.

Depois, enquanto comentávamos as diferenças étnicas entre os povos da Ásia, relatei a surpresa que Ricardo Calaça, um amigo antropólogo, teve diante da reação dos xavantes à presença de japoneses em sua reserva: “Irmãos!”, disseram os índios cheios de sorrisos. Os brasileiros ali presentes, em sua maioria brancos, morenos ou negros, acostumados a serem tratados com desconfiança e certo desdém, ficaram, digamos, magoados com aquele critério racial para categorizar fraternidades. Marcelo, pois, sorriu e me contou sobre uma pesquisa levada a cabo por antropólogos coreanos — sobre a qual Chun me falara por alto — que provava haver conexão genética entre os coreanos e algumas etnias indígenas do Brasil.

“Todo coreano”, dizia ele, “nasce com uma mancha ligeiramente esverdeada na parte inferior das costas. Os chineses não têm isso, nem os japoneses. Mas esses antropólogos descobriram índios brasileiros que nascem com o mesmo fenótipo, com a mesma mancha…”

A seguir — fazendo referência à minha crônica Ideogramização Global — perguntei ao Marcelo se os coreanos, tanto como os japoneses, também utilizam o zhongwen (kanji, no Japão), o sistema de escrita por ideogramas. “Sim”, disse ele, e confirmou o que eu e o jornalista Washington Novaes, pai do Pedro, havíamos conversado noutra festa: a escrita em ideogramas está fadada a se alastrar por todo o planeta, uma vez que, quando um texto é escrito em ideogramas, e apesar de ter sido gerado mentalmente em determinada língua, é facilmente lido por uma pessoa que não saiba bulufas daquele idioma. Basta saber ler ideogramas e você compreenderá qualquer texto deste planeta em sua própria língua, sem qualquer necessidade de tradução. (Na verdade, ler ou escrever em ideogramas independe de qualquer linguagem fonética, mas isto quando se está só. Quando você precisa dizer a alguém o que está escrito, ou o que deve ser escrito, em ideogramas, uma língua entrará na jogada. Ainda não praticamos a telepatia, a pura transmissão de idéias. Precisamos dos sons, dos fonemas.)

“Essa almofada nas suas costas, Yuri, tem um ideograma. Deixa eu mostrar pra você o que significa.” E, surpreso com a sincronicidade – estávamos em Perdizes, bairro de São Paulo, no apartamento duma amiga do Chun -, lhe passei uma almofada amarela com um ideograma preto. Obviamente, fiz uma daquelas brincadeiras mentais que costumo fazer comigo mesmo e, por supuesto, com Deus: “eis o meu destino”.

“Veja só: aqui você tem dois sinais embaixo e um maior em cima. Este aqui à esquerda, formando este arco, é como um braço que, com o punho fechado, descansa sobre a cintura, sendo este risco, este oposto ao braço, a linha do tronco dum homem. É a posição de descanso do guerreiro e, por isso, significa força.”

“Hum, saquei.”

“Este outro sinal, à direita, é formado por um par de dois pequenos símbolos: este de cima é um martelo e, abaixo dele, você vê uma bigorna. Juntos significam trabalho.”

“Puts, cara, que louco, agora eu vejo.”

“O símbolo da força em conjunto com o símbolo do trabalho simbolizam o poder. Já este outro maior, sobre ambos, necessitaria duma explicação mais longa. Por isso vou direto ao ponto: significa alcançar, atingir. Enfim, o ideograma completo significa ‘o poder de alcançar’ ou, numa só palavra, ‘sucesso’. Você estava sentado sobre o seu sucesso…”

“Posso levar isso a sério no âmbito das minhas atividades literárias?”, perguntei.

“Se você tiver talento, que é uma expressão da força, basta trabalhar… Se não tiver, não fique impressionado, este é o ideograma mais difundido nas lojas de decoração.” E rimos. Mas Deus sabe que eu não sabia disso…

Finalmente fiquei interessado em saber por que ele havia escolhido o Brasil para morar. Não podia ser simplesmente por achar que o mercado brasileiro para Massively Multiplayer Online Role Playing Game (MMORPG) — é o que a empresa dele produz — que o mercado brasileiro era o ideal para ele.

“Eu sou católico”, disse ele, “queria saber como era viver num grande país católico”.

Fiquei de cara: “Sua família é toda católica?!”

“Não, apenas eu. Metade da população coreana é cristã, mas não exatamente católica. São protestantes. Os demais são budistas.”

“Mas por que logo o catolicismo?”

“Não sei dizer. Talvez porque eu, quando mais jovem, quisesse ser diferente de todo mundo que eu conhecia. Eu era rebelde como todo adolescente. Mais tarde cheguei à conclusão de que este caminho solitário me levaria a novas revelações, a revelações que a maioria talvez ainda não tivesse acesso.”

“A revelações ou… à Revelação?”

“Para mim tanto faz. Dei a volta ao mundo para encontrar algo que me trouxesse uma certeza para o que acredito.”

“Sei.”

“Por que essa cara? Por acaso você teria algo a me revelar?”

E eu: “você já ouviu falar do Livro de Urântia?”

:P

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