Não imaginei que ficaria tão decepcionado com a trilogia Matrix. E não é porque os últimos dois filmes “não têm conteúdo”, “são apenas filmes de ação” ou críticas do gênero. O primeiro Matrix foi uma espécie de clave de sol que a orquestra, nas duas sequências, interpretou como clave de fá. Se tivessem se afinado com o primeiro filme, eu até poderia não concordar com a cosmogonia dos caras — essa viagem errada gnosticista –, mas bateria palmas. E não tem nada a ver culpar o virtuosismo técnico do John Gaeta, dizer que os efeitos especiais oprimiram a idéia original. O problema é bem outro: os irmãos Wachovsky tentaram juntar zen-budismo com messianismo salvador, uma coisa que nem o Li Hongzhi da Falun Gong ainda se atreveu a fazer. E, claro, só podiam mesmo criar um monstro de mil e uma cabeças de Mister Smith. Aliás, o maior símbolo da decadência da trilogia é a figura de Morfeus: no primeiro filme, ele é um Mestre, um Iniciado em Altos Mistérios; no segundo, não é senão mais um militar entre vários outros; e, no último, ele é apenas o namorado assustado de uma garota que dirige feito doida. Sim, os brothers acabaram rimando Buda com bundão…
Pois é, nós ocidentais temos essa mania de tentar encontrar uma resposta no Oriente, seja ela material ou espiritual. Desde Marco Polo passando por Camões, Richard Francis Burton, Schopenhauer, René Guénon e Herman Hesse até Aldous Huxley e Alan Watts, sempre houve quem saísse do pôr para o nascer do sol aspirando encontrar a Luz. Mas, claro, bastaria caminhar um pouco mais para completar a volta e retornar ao ponto de partida: o Oriente é aqui mesmo. Os Wachovsky foram até Daisetz Teitaro Suzuki e, na volta, esbarraram em Nietzsche, o mesmo Nietzsche que tragou e cuspiu o budismo de Schopenhauer. Assim, no final do primeiro e no correr dos dois últimos filmes não nos deparamos senão com o “super-homem” (ou sobre-homem), o “espírito de pesadume”, o “eterno retorno” e o “niilismo”. De toda aquela pretensa gnose inicial — aquela salvação pelo conhecimento — não restou nada mais que isso: Nietzsche em quadrinhos. E eu nem sei se eles leram Nietzsche. Mas certamente leram William Gibson — autor de Neuromancer (1984) — o primeiro a tratar de um viciado em drogas digitais em busca de uma certa Matriz. No livro, Zion é uma estação espacial em torno da Terra habitada por anciãos rastafari que passam o tempo viajando e cultivando maconha hidropônica. São todos envelhecidos precocemente, os membros atrofiados, já que depois de ali chegar — foram operários em sua construção — se recusaram a voltar para a alta gravidade da superfície terrestre, a qual chamam de Babilônia.
“A nossa é a lei de Jah.”
E Case, o protagonista, no último capítulo finalmente encontra-se com a mente por trás da Matriz. Eis o diálogo:
O rosto do Finlandês na tela gigante da parede… Podia ver os poros no nariz do homem; os dentes amarelados eram do tamanho de almofadas.
“Já não sou o Wintermute.”
“Então, o que é?”
Bebeu diretamente da garrafa, não sentindo nada.
“Sou a Matriz, Case.”
Case soltou uma gargalhada.
“E onde é que isso o leva?”
“A lado nenhum. A toda parte. Sou a soma total das coisas, o espetáculo todo.”
“Aquilo que a mãe de 3Jane pretendia?”
“Não. Ela não seria capaz de imaginar aquilo em que eu me transformaria.”
O sorriso amarelo alargou-se.
“Então, qual é o resultado? Em que é que as coisas são diferentes? Está agora dirigindo o mundo? É Deus?”
“As coisas não são diferentes. As coisas são coisas.”
“Mas o que você faz? Limita-se a estar aí?”
Case encolheu os ombros, pousou a vodka e o shuriken no armário e acendeu um Yeheyuan.
“Falo com os da minha espécie.”
“Mas, se você é tudo… Fala consigo?”
“Há outros. Já encontrei um: uma série de transmissões registradas durante um período de oito anos, nos anos 70 do século XX. Antes de eu existir, ninguém era capaz de saber, ninguém podia responder.
“De onde?”
“Da Constelação de Centauro.”
“Oh”, exclamou Case, “isso não é papo?”
“Não é papo.”
E a tela ficou novamente apagada.
Está claro que o final do livro é muito mais empolgante que o final da trilogia Matrix. A sensação que fica, da história de Gibson, é que existem tantas Matrizes quantas são as galáxias e que, no correr do tempo, o destino de todas é irem se revelando umas às outras, iniciando um novo nível de relação inteligente. Não há um mundo virtual hermeticamente fechado, não há essa solidão absoluta da trilogia. O destino das matrizes é alcançar a unidade. E é provável que sua união exija a presença de um… Patrix? Por que não?
Já a trilogia, bem… Não resta muito o que dizer, é apenas decepcionante. Todos os personagens estão presos naquele mundo virtual, vivendo uma história cíclica. O eterno retorno. Todo o messianismo de Neo não é mais que a veleidade de um super-homem automático incapaz de transcendência. Para ele, o amor é o amor romântico, aquela mesma água com açúcar de sempre. Não há qualquer traço de verdadeira espiritualidade. Não hesita em arrasar meia cidade para salvar a namoradinha. Isto é amor? Nem o Messias, o Senhor das Batalhas hebreu, seria tão cruel e insensível. E, claro, jamais seria tão egoísta. Enfim, ele não passava mesmo daquilo que o tal Arquiteto já revelara: um mecanismo de auto-regulagem do sistema. Pura máquina ou, para ser mais exato, um Norton Antivirus. E com o vilão Smith os Wachowsky perderam qualquer noção real de maldade: parecia o diabo — pois se comportava como um vírus auto-replicante, um vírus niilista, anarquista — mas era o mais próximo de um humano ali. Sua revolta poderia ser interpretada como a negação desse isolamento coletivo, a negação dessa falta de sentido transcendente na existência de quem vive dentro da Matrix. Ele queria mais, ir além da mesmice, e pensava que o conseguiria ao dominar tudo. É mais trágico que Neo, o Antivírus, o cordeiro autômato. Depois disso tudo, quem acharia estranho o silêncio que cobriu as duas seqüências? Não houve qualquer repercussão. Na verdade, ainda não conseguiram inventar uma história mais deslumbrante que a do Senhor deste Universo…