A Bacante da Boca do Lixo

Quase todo aspirante a escritor que se preze já leu e já desejou ser Henry Miller. Para quem tem a cabeça de cima cheia de hormônios, a de baixo cheia de idéias, e o quarto entulhado de literatura, nada mais atraente do que aquela vida intelectovagabunda com mil e um personagens fascinantes e uma mulher pirada para amar. To fuck, diria Henry… Bem, a questão é que tive meu mais forte momento milleriano assim que deixei Brasília e voltei a São Paulo sem diploma, sem lenço e sem documento.

Eu e meu ex-sócio, o fotógrafo Dante Cruz, como estávamos sempre duros — a grana ia toda para nosso estúdio da Vila Olympia — costumávamos freqüentar a Boca do Lixo e os arredores da Praça Roosevelt, centrão paulistano, onde tudo é mais barato, mais excitante, mais concreto e, digamos, mais Role Playing Game. Foi por ali, em frente ao Love Story, vulgo Quatro e Meia (a hora em que o bicho começa a pegar) que, em 1997 ou 1998, conheci Duda. Para quem não sabe, o Love Story é aquela boate onde toda a fauna noturna se encontra: executivos japoneses em viagem de negócios, jornalistas sabichões, prostitutas a trabalho ou não, ricos do interior aventurando-se na megalópole, clubbers experimentando a noite, cafetões “de olho”, traficantes com tudo em cima, playboys à caça, modelos baladeiras, estudantes universitários, excluídos do Café Photo, enfim, artistas e pseudos, tarados e mafiosos, vampiros e deusas. Tudo evidentemente temperado pelo ar apocalíptico que só São Paulo sabe ter. Um local onde se deve simplesmente dançar, sem planejar conquistas românticas, afinal, ou as mulheres são muito donas de si ou, pelo contrário, já têm dono, e daqueles bem barra-pesada.

Pois é, eu e o Dante já havíamos circulado — com a ajuda de um “conhecido” dos mais suspeitos e super integrado na área — por diversos night clubs (alguns com mulheres nuas sobre as mesas a esfregar a bunda nos clientes, tipo Duke Nuken 3D) e, no final das contas, o negócio era mesmo o Love Story, que é baixaria, mas baixaria estilizada, bacana. E, conforme dizia, lá estava a Duda: linda, gatinha, “gotozinha” e, puts, alone. ¿Esperando alguém? Bom, seria necessário indagar-lhe, mas um tímido escorpiano não sabe por onde começar, sabe apenas, depois de um contato inicial, prosseguir e apertar, parlare e apertar, apertar bastante. (“Quem muito abraça, pouco aperta”, dice mi madre.) Comentei com o Dante: “Meu, olha essa figura: meu tipo, meu tamanho, gatíssima.” É óbvio que eu estava cometendo pela milésima vez o velho grande erro: estava dizendo ao meu amigo mais malandro, mais forte, mais alto e, o pior, de olhos verdes, que havia um alvo às duas horas, velocidade aproximada de zero nós.

“Vai lá falar com ela”, disse ele.

“Agora?!”

“É, agora, ¿qual o problema?”

“Não, cara, não tenho a manha, ¿saca?”

“Afirmativo”, retrucou ele, ou talvez tenha dito “Roger that”, sei lá. A questão é que, mal havia olhado para o outro lado, quando me voltei para novamente falar com ele, o cara já estava lá de papo com a figura. Fiquei pê da vida: ele iria furar a fila de novo! Em que tenebrosa hora eu decidira dividir casa e estúdio com esse cara… Assim que ela riu de um gracejo qualquer emitido pelo sacripanta — dentes muito brancos, sorriso delicioso — virei novamente o rosto para o outro lado, fulo de raiva. Comecei a maquinar pensamentos terríveis, bambu sob as unhas, prego sob o pneu, areia dentro da Nikon, bagulho na privada, etc., aquele gênero de magia negra que se faz mentalmente contra um traidor. Quando eu já estava assistindo ao funeral dele em minha tela interior, me tocaram o ombro. Virei-me: era ela!

“¿É verdade que você é escritor?”, disparou. Acho que fiquei roxo. Embora eu já tivesse escrito meu primeiro livro, ainda não o havia publicado, e isso me deixava morto de vergonha de assumir a pecha de escritor.

“Bom, na verdade só escrevi um livro…”

“Seu amigo me disse que você escreve super bem.”

Carácoles! Eu xingando o cara e ele cantando a garota em meu nome!

E ela: “¿Você gosta do Pessoa?”

“¿Do Fernando Pessoa?! Puts, curto muito!”

Ela: “Tão abstrata é a idéia do teu ser/ Que me vem de te olhar, que, ao entreter/ Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,/ E nada fica em meu olhar, e dista/ Teu corpo do meu ver tão longemente,/ E a idéia do teu ser fica tão rente/ Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me/ Sabendo que tu és, que, só por ter-me/ Consciente de ti, nem a mim sinto…”, e riu: “nossa, esqueci o resto”.

E eu, já despirocado: “E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto/ A ilusão da sensação, e sonho,/ Não te vendo, nem vendo, nem sabendo/ Que te vejo, ou sequer que sou, risonho/ Do interior crepúsculo tristonho/ Em que sinto que sonho o que me sinto sendo”.

Pronto, estávamos fodidos, rindo um da cara do outro. Bom, eu pelo menos, porque era linda, não devia ter mais de vinte e um anos de idade, um olhar asfixiante e, sobretudo, porque declamou para mim um dos meus poemas prediletos.

“¿Vocês não querem ir a uma festa comigo?”, perguntou logo que o Dante se aproximou. Claro que queríamos e, antes de chegarmos ao carro, ela tomou minha mão. Foi neste momento que sua vida cheia de contrastes começou a entrar na minha alma. Ela parecia uma fada, uma mulher recém desabrochada, mas tinha a palma da mão áspera, calejada por algum trabalho manual. Ela não era de porcelana, era de verdade. Encarei-a com uma ternura além da paixão, porque parecia alguém que se perdera e que eu, também perdido, agora encontrava.

No carro, nos disse seu nome: Duda. Também me contou que era de Santo André e que, após ter sido expulsa de casa pelos pais (não disse então o porquê), dividia com duas amigas um flat. Pensei que a tal festa seria lá, mas, mal percorremos dois ou três quarteirões, chegamos ao local.

“Pode parar por aqui”, avisou.

Caminhamos, pois, de mãos dadas pela calçada, enquanto eu ia olhando para cima, tencionando descobrir em qual apartamento daquele antigo prédio estaria rolando a tal “festa”. Mas ela estacou diante de um porteiro de boate, um verdadeiro Mike Tyson de gravata, e o saudou toda dona de si: “Eles estão comigo”, disse, e nos conduziu para dentro de mais um night club. Em meio à penumbra, subimos escadas com frisos de neon violeta e, lá em cima, vimo-nos metidos em outra casa noturna típica da região: pista de dança, passarela para dançarinas, bar, mesas platinadas, fumaça de gelo seco, estroboscópicas, globo no teto e demais parafernálias à la John Travolta. As cores e a decoração eram das mais cafonas. Estranhei:

“¿É aqui a festa?”

“É!”, respondeu lacônica, e saiu a cumprimentar seus conhecidos. E eram vários, incluindo o barman e alguns garçons. Eu e o Dante nos sentamos numa mesa em frente à passarela e nos encaramos um tanto aturdidos. Não havíamos escapado da fauna noturna, como imagináramos a princípio, para nenhum ambiente mais acolhedor. Lá estava a réplica dançante das mesmas criaturas do Love Story, embora um tanto mais bregas, mais reais. Mas ao menos havia a Duda, que não tardou em reaparecer, me levar para um canto próximo ao bar, me beijar e perguntar: “¿Você já tem uma musa?” Não fosse ela uma autêntica pretty woman, dentro de um excitante vestido, e aquela pergunta teria soado ridícula.

“Ainda não”, respondi.

“Tem sim!”, disse, tornando a me beijar a boca, o que evidentemente me deixou inspirado. Quando eu já ia me empolgando, me levou de novo pela mão até a mesa. “Tenho uma surpresa pra vocês!”, acrescentou, afastando-se em seguida, toda lépida. Incrível como um homem pode tornar-se um idiota na mão de uma dessas figuras. E ela não parava de saltar de um lado ao outro, cheia de mesuras e sorrisos, conversando ora com este, ora com aquele numa velocidade incrível, sem deixar de atirar olhares e sorrisos supervisores na nossa direção. Parecia elétrica.

“Deve ter cheirado”, pensei.

Dali a instantes, meteu-se na pista, desapareceu. Eu e o Dante ligamos então o “foda-se”, pedimos uísque e passamos a nos aclimatar, observando a paisagem. A pista fervilhava. Lá estavam as Monas, Junes, Anaïs Nins e todas essas figuras capazes de tirar a razão de um homem. Algumas, claro, em seus rutilantes vestidos longos, pareciam ter saído de uma daquelas pornochanchadas da antiga Sala Especial da TV Record. O DJ alternava sons eletrônicos com discoteque, que parecia ser o estilo predileto dos michês e garotas de programa. Levado por uma batida mais vibrante, decidi dançar, mas, justamente ao chegar à pista, o som foi interrompido e o DJ anunciou certo “show”. Meio sem graça por ter sido frustrado na primeira tentativa de elaborar, naquele ambiente, minha famosa “dança raver-sioux do acasalamento”, voltei à mesa. O Dante, claro, já havia puxado conversa com a garota da mesa ao lado quem, apesar de não parecer lá muito disposta, preferiu dar um crédito ao moço dos olhos verdes. E o show começou.

No centro da pista de dança havia uma passarela e, em sua extremidade, uma abertura. Dali surgiu Duda vestida de colegial. Era como o uniforme do colégio de freiras onde estudaram minhas irmãs, o Emilie de Villeneuve, mas estilizado, as saias mais curtas, as pernas longas e torneadas à mostra. Ela parecia uma dessas personagens de animês, uma ninfeta desses hentais, e os homens simplesmente ficaram loucos. Ela desabotoou a parte superior da camisa branca deixando visível uma tentadora amostra grátis. Ereções linguais percorreram viroticamente a assistência. E ela dançava como a bailarina dos meus sonhos adolescentes, a culpada por tantas poluções noturnas. Eu estava assombrado.

“Meu, ¿você acredita nisso?!”, perguntou Dante, me cutucando.

“Tão abstrata é a idéia do MEU ser que me vem de olhá-la”, comecei.

“Hã?”

“Nada não…”

E, de fato, ela foi paulatinamente se despindo. Minha nova musa era uma stripper! Eu estava seriamente enrascado. Seria difícil retomar a leitura do Livro de Urântia no dia seguinte. Meu Jesus Cristinho…

“Uhuuuuu!!”, berravam ao redor, inclusive as mulheres. Algumas bichas, então, estavam em êxtase. Sempre me admirei com essa empolgação que mulheres deslumbrantes causam na viadagem. “Arrasou!! Arrasou!!”, uivavam.

E ela ficou apenas de sutiã, calcinha, meias brancas — na altura dos joelhos — e sapatinho colegial preto. Fazia caras e bocas, reagindo com expressões indescritíveis aos gritos da platéia. A certa altura, parou diante da nossa mesa, ainda na passarela, sorriu, virou-se de costas, inclinou o tronco para frente, sempre em mil contorções rítmicas, e retirou o sutiã, retendo os seios nas mãos em concha. Eu, que sou homem, portanto um idiota, fiquei com a cabeça de baixo às voltas com mil “pensamentos”. Por fim, colocou-se ereta e, ainda a dançar, languidamente, foi tirando a calcinha. Ao terminar voltou-se súbita, no bit da música, de frente para a platéia, que veio abaixo: ela era maravilhosa! Permanecendo apenas de meias e sapatos, olhou na direção da nossa mesa e, com um gesto rápido e zombeteiro, nos premiou com sua calcinha e sutiã, que me atingiu em cheio o rosto. Fiquei tão estupidificado que minha velha paranóia de estar sendo enganado por algum programa de câmera escondida retornou.

“Isso não é uma sacanagem armada por vocês, ¿né?”, perguntei ao Dante.

Ele estava com a boca tão aberta e os olhos tão vidrados que nem notou o Yuri, o autor deste relato. Era tudo real mesmo. E se ele, que foi assistente no Estúdio Abril de diversos fotógrafos da revista Playboy, se ele, que trabalhou nas fotos de nu da Luíza Brunet, estava embasbacado, é porque o “show” foi mesmo um show sem aspas.

“¿Que será que vai rolar agora?”, pensei comigo, enquanto Duda recolhia suas roupas e, aos pulos, corria, feito quem acaba de “fazer arte” — no sentido sapeca da expressão — para dentro dos bastidores.

Quando voltamos ao planeta Terra e retomamos o contato com Houston, Dante e eu pedimos outro uísque. Duplo. Como nos filmes, afinal, tudo podia rolar. Menos, é claro, perder a garota para ele, que, aliás, talvez se sentisse agora um pouco arrependido por me entregar a figura de bandeja. Parecia ensimesmado.

“Não fica assim, meu, ela tem as mãos ásperas”, eu disse.

“¿Como é que é?”

“Nada não”, e ri.

E, instantes depois, lá estava ela, Duda, com o mesmo vestido que usara ao chegar, os cabelos molhados, sorrindo ironicamente, vindo em nossa direção, enquanto, para delírio da galera, rolava David Bowie. A melodia, a batida, combinava com a cena, mas o título — Dead Man Walking — não tinha nada a ver. Era, sim, a Vida walking.

“…ao entreter os meus olhos nos teus, nem a mim sinto.”

Mas aconteceu o inesperado. Quando ela estava a uns três metros da nossa mesa, um braço masculino — daqueles bem perigosos, ¿saca? — a reteve. Ela olhou para o figura e deu um sorriso amarelo. Ele a abraçou e a beijou nos lábios. Aquilo foi um iceberg no meu Titanic. Ela não parecia nada empolgada, mas correspondeu. Caramba, pensei, só faltava além de stripper ela também ser uma prostituta e aquele, o “dono” dela. Era um figura alto, de cabelos compridos, forte e com cerca de trinta anos de idade. Pelo jeito, acabara de chegar e não fazia a menor idéia de que havíamos chegado juntos. Após algumas palavras, levou-a pela mão até uma mesa do outro lado do club. Ficamos órfãos assistindo à cena.

“¿E agora?”

Dante riu: “Dançou, papudo.”

Já que estávamos ali mesmo, de graça, decidimos ficar e curtir o resto da noite. De qualquer forma, logo amanheceria. Bebemos, dançamos, trocamos impressões sobre as figuras que por ali circulavam, especulando sobre suas vidas. ¿Onde morariam? ¿Como ganhariam a vida? ¿Em que cidade teriam nascido? ¿Que crimes teriam praticado? ¿Que virtudes manteriam intactas? ¿Assistiriam ao Jornal Nacional? Por mais que tentássemos encontrar motivações nobres naqueles olhares altivos, gestos majestáticos, gargalhadas fátuas, o fim daquilo tudo haveria de ser a mesma solidão profunda e escura que tantas vezes também nos encontrava. Era óbvio que havia uma hierarquia oculta ali, os traficantes mais poderosos, os cafetões mais foderosos, as mulheres mais fodíveis e, logo abaixo, seus sequazes, êmulos, inimigos e fãs. Contudo, os “exploradores da noite” eram os únicos que pareciam buscar, com o olhar, algo além das aparências. Era fácil reconhecer quem estava ali tencionando simplesmente conhecer um outro mundo. Como nós mesmos. Já os seres autóctones eram pura paisagem, caças e caçadores. Ali não havia o mesmo clima descontraído do Love Story. Apesar das risadas e da dança, havia chumbo no ar. ¿Perceberiam o teatro que aquilo tudo era? ¿Teriam consciência do potencial trágico que aquele ambiente dava às histórias de suas vidas? Talvez não. Nós tampouco.

O club foi se esvaziando, as músicas se acalmando, a conta se expandindo. Decidimos ir embora. Nenhum sinal da Duda. Talvez já estivesse longe, dando o lindo fiofó àquele cretino. Levantei-me e fui ao banheiro — um lugar apertado, com cheiro de vômito e dois cheiradores de coca diante do espelho. Ao sair, eu a encontrei logo à porta.

“Yuri, me desculpa…”

Eu não sentia um pingo de raiva, mas estava desapontado.

“¿Quem é esse cara? Seu… ¿namorado?”

“Ele paga o aluguel do meu flat…”, e sorriu com uma ponta de tristeza. Num relance, entendi a arapuca em que estava metida. E, embaraçada, estava ainda mais bonita. Com a mão, para vê-la melhor, afastei uma mecha de seus cabelos. Ela deu um pulo e me beijou. Ficamos abraçados por um minuto. Seu hálito era doce, seu cheiro…

“Eu escrevo algumas coisas”, disse, “uns poemas”. E voltou a me beijar. “Mas o que eu quero mesmo é ser dançarina. É minha lenda pessoal“, acrescentou.

“¿Lenda pessoal?”

“É, ¿você nunca leu Paulo Coelho? Meu, é muito bom!”, e sorriu com doçura.

Eu não sabia o que pensar daquela garota. Sabia Fernando Pessoa de cor, mas citava Paulo Coelho; era stripper, tinhas as mãos ásperas, o rosto e os lábios de seda. E, afinal, ¿qual o problema de se ter uma “lenda pessoal”? ¿No final das contas não era exatamente o mesmo que Victor Frankl chamava de “o sentido da vida”? ¿Não era aquilo que o fez sobreviver ao campo de concentração nazista e que a faria sobreviver àquela vida? Frankl escreveu: “Em épocas de crise, as pessoas se agarram a um sentido, a um significado. O significado é força. Nossa sobrevivência pode depender de buscá-lo e encontrá-lo”. Aliás, ¿minha “lenda pessoal” não era ser um escritor? Tudo bem, concedo: a beleza, a malícia infantil e a ternura de uma mulher nos faz conectar quase tudo…

“Olha, me liga”, disse, olhando furtivamente por cima do meu ombro. E, antes de dar um passo para trás, colocou um bilhete no bolso da minha calça. Ao mesmo tempo surgiu o tal “mantenedor” do flat. Fomos apresentados — eu era um “amigo da Ana Patrícia” — e ele apertou minha mão com a força de quem demarca seu território. Disfarcei uma engolida em seco. Eu, um duro, estava ferrado, precisava tirar essa garota dessa situação. No fundo, no fundo, tratava-se da velha história de “salvar” uma Maria Madalena. Para cada um de nós, há sempre a possibilidade dessa velha situação arquetípica. E, claro, o perigo de incorrer no erro henry-milleriano: ao invés de tirar a garota da sinuca, meter-se com ela na mesma enrascada, enquanto o “mantenedor” banca tudo. E, para nosso eterno desgosto, também a papa gostoso.

“Falô”, despediu-se o cara lenvando-a pela mão.

Não sei se eu e o Dante saímos do night club antes ou depois deles, mas os vimos lá fora. Já havia amanhecido, um dia gelado, e o contraste entre os vampiros que fogem da luz e os velhos madrugadores de regresso da padaria, cheios de olhares de reprovação, era algo cortante. Ela ainda acenou para nós, encarou o cabeludo e, ríspida, deu a ordem: “Vai lá buscar o carro, eu não vou andar isso tudo”. E o “demarcador de territórios” saiu com o rabo entre as pernas atrás do carro. E ela, sem que ele visse, ainda caminhou atrás dele por algum tempo, como uma sombra, macaqueando sua forma desengonçada de andar.

“Anda, idiota!”, gritou a doce menina, que, pelo visto, conhecia muito bem o poder da própria beleza. E a cena toda, em vez de me causar repulsa, me seduziu ainda mais. Questões de ego. Amamos quem vence o vencedor. Leia de novo essas duas últimas frases. Em vista das circunstâncias, que ficarão mais claras, há para elas pelo menos três interpretações distintas, sendo uma delas superior às demais. Camões explica.

Durante a semana seguinte, não conseguimos nos encontrar. Não houve tempo. Tinha meu trabalho intelectual no estúdio — pintar paredes, levar filmes ao laboratório, digitar orçamentos, virar noites — e acabamos nos falando apenas ao telefone. Conversamos em três ou quatro ocasiões. Em cada uma delas, ficávamos no mínimo uma prazeirosa hora falando e rindo sabe lá Deus de quê. Ela era inteligente e tinha ótimo senso de humor. Era ariana, um dos meus fracos. Em nosso último contato, eu a convidei para sair no final de semana seguinte. Uma rave, talvez. Ela disse que só poderia sair se o tal fulano não aparecesse. Ficamos de nos falar e confirmar. E o fulano quebra-ossos-da-mão apareceu. Não saímos. Mas saí com o Dante e a Luar, namorada dele. Fomos ao Teatro Oficina assistir à montagem de As Bacantes, de Eurípedes, por obra de Zé Celso Martinez Corrêa, o “Guru do Cu”. Era justamente uma peça que li e reli trocentas vezes — tendo inclusive escrito a partir dela um conto-paródia, Penteu, o Pentelho — graças ao professor Marcos Motta, atualmente coordenador do curso de artes cênicas da UnB. Um cara do bem.

Para quem não conhece, o Teatro Oficina é uma estrutura das mais curiosas. Sua forma não tem nada a ver com o tradicional “palco italiano”. É antes como uma régua: estreito e compriiiiido. E o louco é que o palco acompanha toda a extensão desse compriiiiido. E em vários níveis, com atores sobre andaimes e mezaninos, dando um efeito caleidoscópico à coisa toda. Logo, a cena a que assistimos não é “a” cena, são “as” cenas. Sem falar que é possível, também para a platéia, ficar mudando de posição no correr da peça, indo para o outro lado do longo palco, para o mezanino e assim por diante. Quando não há diálogos, você se divide entre mil pontos de vista, entre as várias situações apresentadas. Logo, é possível assistir a uma mesma peça dez vezes e guardar dez peças diferentes na memória.

Bem, como eu dizia, fomos eu, o Dante e a Luar, uma figura linda, engraçada e “lunártica”. Na entrada fomos recebidos por taças de vinho, sempre abastecidas, o que já me causou ótima impressão, afinal, estávamos no encalço de Dionísio, de Baco. Sentamo-nos primeiro na platéia inferior, ao lado direito de quem entra. O ambiente, claro, era de festa, de bacanal. Eurípedes, dentre os antigos dramaturgos gregos o mais jovem, talvez aprovasse tudo o que veio a seguir. No fundo, As Bacantes é simplesmente a peça em que ele, ao testemunhar a decadência de Atenas — que já vivia sua fase secular e descrente —, expressa seu desgosto. Eurípedes, feito uma Hilda Hilst, retirou-se para a Macedônia, cu-de-judas da época, onde viveu recluso e criou essa tragédia sobre o cético e pentelho Penteu, rei de Tebas, o qual se burla daquele jovem que diz ser Dionísio e o manda prender. O jovem, que era de fato o deus, após mil e um avisos, que sempre precedem uma tragédia, não apenas põe a prisão abaixo como enlouquece todas a mulheres, permitindo que a própria mãe de Penteu o devore, com outras mulheres, feito um bando de animais selvagens. É, enfim, uma peça que, caso tivesse sido lida por Anás, Caifás e Pilatos, teria nos poupado de muitas amarguras.

E o Penteu do Zé Celso era um clone do Collor de Melo, e Dionísio, uma drag queen de plataformas e roupa-pele de strass e paetês que tudo cobria exceto o pau, que se expunha por uma grande fenda. Coisas do Guru do Cu. Talvez por eu já estar embriagado — minha conjunção Júpiter-Netuno me faz extremamente sensível a qualquer substância — nada me desagradou. Mas, pelas perguntas da Luar e do Dante, percebi que só quem havia lido a peça conseguia entender o que afinal se passava no meio de toda aquela agitação. Bem, talvez porque já estivessem também tão bêbados que mal conseguiam se equilibrar sobre o fio condutor da história. Não sei ao certo, eu precisaria assistir a tudo de novo com o cérebro intacto para emitir um juízo definitivo. Mas a questão é que, entendendo ou não o espírito da obra — que para mim é a “tragédia da descrença” — todos captavam ao menos o espírito de Dionísio, o patrono do teatro. A iluminação era excelente, assim como os efeitos de som, os figurinos, os atores e, claro, as bacantes eram umas garotas lindas. (Não sei se todas, como já disse o autor deste relato estava breaco.) Mas, enfim, tudo correspondia.

A certa altura, enquanto eu observava um discurso de Penteu à direita, começaram a puxar, pela centésima vez, a manga do meu casaco.

“Calma, Luar”, eu disse, “peraí que já te explico o que tá rolando…”

Mas a figura insistiu tanto que chegou a me fazer entornar um pouco de vinho.

“Ei!”, reclamei e, ao olhar à esquerda, dei de cara com uma “bacante”.

“Vem!”, dizia ela, suplicante, “vem comigo!!”. E eu: “¿Eu?! ¿Ir aonde?” Ela: “Pro palco! Por favor…”

A figura era uma gatinha e parecia preocupada. Tive a impressão de que ela corria o sério risco de ser colocada a ferros e de ser chicoteada após a peça caso não obtivesse sucesso em seu intento. Juro, fiquei com peninha. E como eu já estava mesmo mais pra lá do que pra cá, engoli o que havia sobrado da minha timidez — e do meu vinho —, e me deixei conduzir, de mãos dadas. Dante, ao perceber por que eu me levantara, não conseguiu evitar a gargalhada. Dava tapas na própria testa de tão divertido, afinal, ele era meu amigo havia vinte e dois anos e conhecia bem este narrador. Mal chegamos ao centro do palco — isto é, centro apenas no sentido transversal — e a figura, com uma rapidez espantosa, sumiu por trás de mim. Frações de segundo antes de eu sequer pensar em procurá-la, senti um peso a me desequilibrar: a bacante havia saltado nas minhas costas e me abraçava o quadril com as pernas, o pescoço com os braços. E o pior: ficava fazendo movimentos frenéticos para cima e para baixo com a clara intenção de me levar ao chão. Um tanto aturdido e confuso, cedi. Caí para trás, sobre ela, que continuava a me agarrar com todas as forças.

“Aiaiai”, era tudo o que conseguia pensar.

Subitamente, continuando com seu ataque feroz, ela arrancou meus óculos, colocou-os no bolso do meu velho paletó de caxemira e, tomando meu queixo com energia, puxou minha cabeça para trás, em sua direção. Pensei que fosse me degolar ou coisa assim, mas não: ela, que já estava com a alça de seu traje de bacante caída de lado, me oferecia um rígido, volumoso, pálido, pontudo e belo seio nu. Fiquei de cara. Olhei-a diretamente nos olhos.

“Relaxa”, disse sorrindo.

E eu relaxei, deixando-a colocar seu mamilo em minha boca. Tudo isso, obviamente, diante de centenas de pessoas, fato esse que me despertou, em conjunto com o vinho, a libido e o embaraço, um sentimentozinho de vingança.

“¿Ah, é, espertinha?”, pensei, “então tá”, e passei a sugar aquela beleza com vontade, circulando seu mamilo com uma língua frenética. Senti-o intumescer-se em minha boca. Olhei-a de relance, não vi seus olhos, mas pude perceber que mordia o lábio inferior. Depois voltei a fechar os olhos para melhor me concentrar. Ficamos os quatro ali um bom par de minutos: eu, ela, Dionísio e Deus, que não quis senão observar. Entrementes, rolava ao nosso redor um verdadeiro carnaval, com samba e tudo. E o mamilo da atriz pra lá de ereto. Por fim, a garota retirou minha cabeça dali cuidadosamente, procurou meus óculos, recolocou-os em meu rosto e, levantando-se, me reconduziu pela mão à platéia. Me encarava com um sorriso ao mesmo tempo lânguido, maroto e indignado. “Não contava com minha astúcia, né”, eu pensava, “o nerd chocou a desbundada”. Aliás, o Dante e a Luar também estavam de cara.

“Meu, ¿o que foi aquilo?!” E riam.

Seios do ofício…”, respondi.

Momentos depois, assistimos à batalha entre um casal de namorados e outra bacante. A atriz tentava arrastar o grandalhão para o palco a qualquer custo. O cara, diga-se de passagem, estava mais revoltado que a namorada, que, de fato, tentava acalmá-lo. A bacante saiu dali com as mãos abanando e, claro, veio na nossa direção. À nossa volta, temendo o rapto, a maioria do público estava tomada por risonha paranóia. Mas talvez houvesse algo de magnético em nosso descolado grupo. Pois desta vez foi a minha vez de rir da cara do Dante, que se deixou levar com um ar mais animado que contrafeito. Ele porém não teve a mesma sorte que eu: foi levado até o centrão do palco — centro longitudinal e transversal — onde diversas bacantes, sem se preocuparem com as roupas de “domingo” dele, lhe deram de beber, na boca, farta quantidade de vinho e leite, que ele precisou sorver em grandes e neuróticos haustos, para não se ver banhado por todo aquele líquido.

Enquanto essa e outras cenas rolavam, lembrei-me da Duda. Ela iria adorar assistir àquilo tudo. Aliás — pensei em meio a um esfuziante insight — ¡ela iria adorar era participar daquilo tudo!! ¡É óbvio!!! Ela tinha todo o cacife para fazer parte do elenco do Teatro Oficina: era linda, dançava com brilho, dominava as mínimas expressões do rosto, tinha culhões, era inteligente, bem-humorada e gostava de poesia e, vá lá, de literatura. Certamente poderia adaptar-se muito bem à atividade cênica e, quem sabe, descobrir em si mesma um talento inaudito. ¿Por que não? Eu tinha certeza de que Zé Celso, ao conhecer a biografia e o tipo da figura, iria acolhê-la. Bobo ele nunca foi. E o engraçado: neste exato momento dei de cara com o Zé Tirésias Celso, à minha frente, olhando na minha direção. Como interpretava um cego, percebi que seu procedimento técnico era fixar os olhos em algum ponto e assim permanecer durante cada uma das suas intervenções. Sentindo que eu o olhava diretamente no rosto, encarou-me. Não desviei o olhar — sempre fui bom nessa brincadeira. Na verdade, aproveitei para transmitir a mensagem: “Zé Celso, você vai contratar a Duda, vai contratar a Duda, vai contratar a Duda, a Duda, a Duda…” e ele, desafiador, me encarando. Até que chegou o instante em que, para acompanhar o roteiro, teve de se deslocar e dirigir-se a algum outro ator, com quem iniciou diálogo. “Ganhei”, pensei comigo.

À certa altura do segundo ato, após mais duas taças de vinho, separei-me da Luar e do Dante, e me dirigi ao mezanino, de onde assisti ao restante da peça. Parecia um lugar seguro, do qual as bacantes certamente não voltariam a me seqüestrar. Paranóia. Não queria correr o mesmo risco que o Caetano Veloso quem, semanas antes, havia sido despido em cena. Me haviam dito, no intervalo, que sempre deixavam alguém pelado e as roupas da vítima espalhadas ao longo de todo o palco. Num caso assim, eu não saberia como reagir. Não que eu pudesse me tornar violento — como o cara do outro lado do palco — mas… ¿e se eu ficasse de pau duro? Claro, né, um escorpiano bêbado, vai saber. A vergonha poderia desencadear algo inusitado.

“Muah! hahahahaha!”, gargalhava o viado do Dionísio, balançando o pinto para cima e para baixo, em seu arreganhado traje de strass, plumas e paetês.

Ali, inclinado sobre a tosca balaustrada, o olhar voltado para baixo, voltei a pensar na Duda. Estava mesmo apaixonado. Talvez ela não se mostrasse tão talentosa assim no futuro, talvez eu a idealizasse em excesso, talvez ela fosse mais insensata que corajosa. Não podia descartar a possibilidade de tê-la analisado tão somente com a cabeça de baixo. Mesmo assim, apesar de todas essas dúvidas, eu necessitava fazer algo para resgatá-la daquela vida. Eu conhecia a história de diversas amantes de homens ricos e poderosos. Eu sabia que a Duda não devia desgostar tanto assim do cara que a mantinha. Uma amante também pode colher e de fato colhe muitas infelicidades, mas não é uma prostituta. Algum carinho devia haver ou ao menos houve em princípio. Mas era muito claro que aquele cara a entediava. Estava insatisfeita por não ter a alma fecundada e por já não suportar aquela masculinidade incapaz de pairar acima do nível animal. Ela me confidenciou esse tipo de coisas ao telefone. Chorou uma vez dizendo que, ao descobrir que o amante era casado, pensara em voltar à casa dos pais em Santo André, mas que o pai, a mãe, a avó, o papagaio, sei lá eu, alguém lhe disse que não queria saber de putas na família. Havia sido expulsa por ter sido surpreendida transando com um namorado ou algo assim. Me disse que estava na roubada e que a coragem de ganhar uma grana fazendo striptease não vinha de graça. Porque, para tanto, precisava antes dar uns “tiros”, ¿saca?, cheirar pó. E sublinhava: antes vender a imagem que o próprio corpo. No final das contas, eu sentia que de alguma forma ela esperava minha ajuda. Contudo, eu era o único que, naquela época, não estava fazendo dinheiro algum no estúdio, o qual, ademais, passava por algumas dificuldades e não podia contratar mais ninguém. Eu me sentia impotente. Dificilmente conseguiria manter a mim mesmo e, para complicar, ainda morava de favor com o Dante e sua mãe. Enfim, ¿que diabo eu poderia fazer?

Mas nenhum desses pensamentos deprimia minha mente naquele instante. Eu fruía a peça. Para mim, tudo já estava resolvido. Ela iria trabalhar no Teatro Oficina, mesmo que fosse para começar varrendo o chão. ¿Por que não? Quando se está no lugar certo e se possui uma meta, todas as funções são válidas. Muitas atrizes conhecidas começaram a carreira ali. Duda poderia seguir o mesmo caminho. E se eu não possuía uma avaliação completa de suas capacidades, ao menos de uma coisa eu tinha certeza: ela tinha sentido estético, pois sabia dançar muitíssimo bem.

“Hummm….”, gemeu alto o Zé Tirésias Celso, de joelhos, com o tronco caído para trás, no palco, justamente abaixo do local em que me encontrava. E, ao me ver, voltou ao desafio, encarando-me. “Vou ganhar de novo”, pensei, “não desviarei o olhar”, e tornei à minha transmissão de pensamento: “Você vai curtir a Duda, vai se apaixonar por ela, vai contratá-la” e assim por diante. Eu sustentava seu olhar e ele parecia surpreso com isso, mantendo-se implacável. Foi um dos maiores desafiantes que já enfrentei. E, no entanto, fraquejei. Repentinamente ele sorriu, uma expressão lasciva, e caiu a ficha: carácoles, ¿será que ele estava achando que eu era gay e estava interessado nele? Seu sorriso respondeu: “isso mesmo” e, num reflexo de autopreservação masculina, desviei o olhar. Ele se levantou aos berros, aparentemente energizado com a vitória. Sacana.

Isso tudo se passou, salvo engano, num domingo. No correr da semana seguinte, tentei ligar para Duda diversas vezes. Eu precisava convidá-la para a peça. Como ela morava num flat, em geral era o porteiro quem atendia aos telefonemas. Respondia coisas como “nenhuma delas está em casa”, “saíram”, “foram ao supermercado”, “ela foi fazer uma entrevista para emprego”, etc. Às vezes, uma de suas roomies atendia e transmitia um recado: “ligue às nove da noite, ela tá na aula de dança”, “o fulano está aqui, ligue mais tarde” e tal. E, quando ela me ligava — me ligou três vezes — eu nunca estava no estúdio! Maldita falta fazia a posse de um celular! Quem cresce nessa época pós-celular jamais imaginará o quão vital é ter um desses aparelhos e, pior ainda, nunca se dará conta de como muitas relações dançaram porque antes não existiam. Sem falar obviamente na falta que um carro ou moto faz. Empresário… ¿Que adianta ser empresário e ainda assim duro? ¿Que adianta tentar vencer por iniciativa própria num país cujo governo só sabe sugar, sugar, sugar?

“Caralho!!!”, berrava ao bater o telefone no gancho.

Na quarta-feira, comecei a achar que ela estava me esnobando e parei de ligar. Eu não queria demostrar estar tão fissurado assim. Qualquer um que tenha passado por um par de doloridas experiências amorosas sabe que tal comportamento manda às cucuias nossa cotação no mercado do amor. Na quinta, eu e o Dante voltamos ao Love Story e imediações, mas não a encontramos. Desisti. Talvez eu voltasse a ligar no sábado ou no domingo, horas antes da peça do Zé Celso. No sábado, porém, após uma noite de sonhos agitados e estranhos, amanheci com uma depressão profunda. Ela já não estava retornando as ligações havia algum tempo. Fiquei na fossa o dia inteiro. Ficava vendo na minha cabeça aquele retardado cheio da grana comendo a figura de quatro. Pensava: “pra merda! ¿viu, Duda?!” e, naquele dia, não liguei. Mas liguei no seguinte, tendo rolado o seguinte diálogo com o porteiro do flat:

“Boa tarde, gostaria de falar com a Duda, do apartamento X (não me lembro o número).” E ele: “Olha… ela não está.” “¿Mas que hora afinal vou poder encontrá-la?” Ele suspirou do outro lado: “Bem, pra ser sincero com o senhor, o problema é o seguinte: a Duda faleceu. Ela teve, sei lá, algum tipo de ataque epilético de sexta pra sábado e não resistiu.”

Eu quase tive um troço ali mesmo. Fiquei mudo, o telefone na mão, o olhar perdido.

“¿O senhor é parente dela?”, perguntou.

“Não, sou… sou um amigo.” Meu coração batia descompassado.

“¿O senhor quer que eu peça pra alguma das colegas dela lhe telefonar?”

“Não, pode deixar. Eu vou até aí.”

Fui com o Dante até o flat. Era um prédio mediano na Bela Vista. As duas figuras com quem ela morava haviam acabado de chegar. Contaram que a Duda brigara com o fulano na sexta-feira à tarde e, dizendo-se finalmente livre, resolveu comemorar. Mas, segundo ambas, ela não parecia tão feliz assim. Sua vontade de “comemorar” tinha um tom autodestrutivo ou, no mínimo, uma pulsão de fuga. No fundo devia estar preocupada com o futuro, pois, não tendo família a quem recorrer, agora tampouco tinha aquela fonte de renda. Sem ter conseguido um trabalho fixo, já não podia sequer pagar as aulas de dança…

“¿Por que ela não me ligou?”

“Ela achou que você já tinha desencanado.”

“Mas eu liguei mil vezes pra cá durante a semana!”

“Pode ter ligado, mas ela só recebeu os recados que a gente atendeu. Os porteiros daqui não gostam da gente, não anotam nossos recados…”

E contaram como as três, naquela noite, embarcaram no uísque e, por fim, na cocaína. Duda queria mudar de vida, disse que iria acabar com seu estoque de “coragem” de tirar a roupa em público. E não sobrou mesmo nenhuma. Veio a overdose. Desmaiou, sofreu convulsões. O porteiro da noite ajudou a carregá-la para baixo. Chamaram um taxi, mas, quando chegaram ao hospital, já era tarde.

“Eu acho que ela também tinha tomado um comprimido forte naquele dia. Era um remédio controlado que ela já tomava antes mesmo de sair da casa dos pais.”

“¿E as coisas dela?”

“O pai dela veio até aqui ontem, botou tudo em duas caixas e levou embora pra Santo André. Ele nem olhou na nossa cara. Acho que ele pensava que a gente era puta”, e suspirou olhando pro chão. “A grana dela vai fazer falta…”

Se fosse um filme americano, eu teria corrido até o banheiro e vomitado. Mas não, apenas saímos dali, tomados por um silêncio que se enchia dos ruídos do pensamento. Por que isso, por que aquilo, e tal. Tudo inútil. Havíamos viajado até esse mundo paralelo, o mundo da Boca do Lixo, da noturna “baixaria” paulistana, como quem sai de férias em busca de novos recantos turísticos. Mas a noite — a noite real, a noite do afeto, a noite do amor, o meio-dia da solidão — não é uma brincadeira. Não é melzinho, mas sim fel na chupeta. O Dionísio de concreto paulistano havia devorado mais um de seus habitantes, uma ninfa na flor da idade. E, para meu espanto, lembrei-me que, como toda tragédia, esta também havia sido anunciada: após seu striptease, Duda caminhara em nossa direção ao som de Dead Man Walking, do David Bowie. Uma sincronicidade das mais soturnas. E eu, que tanto desejara seu bem, fiquei apenas com meu “interior crepúsculo tristonho em que sinto que sonho o que me sinto sendo”. Que o Vencedor dos vencedores a abençoe, Duda, esteja onde estiver.

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