Sobre novos autores

Dez anos atrás, depois de participar de diversas oficinas literárias, grupos de leitura, fanzines e atividades do gênero, sem contar as horas e horas perdidamente ganhas na saudosa biblioteca da UnB, e como monitor do professor de Crítica e Teoria Literária Flávio René Kothe, desenvolvi, involuntariamente, certa indisposição para com todo aquele que, ainda em plena juventude de espinhas, se auto-intitulasse um escritor.

Eu próprio, mesmo já tendo escrito meu primeiro livro em 1997, morria de vergonha ao ser apresentado a alguém como sendo um “escritor” ou, coisa ainda pior, um “novo autor”. Sim, preciso confessar. Após me deparar com tantos escrivinhadores confessio(ba)nais, com tantos vomitadores de surubas existenciais, com tanta gente que não conhecia a necessidade de, arriscando-se a cair no abismo, sempre dar ainda outro passo para atrás – e só então verdadeiramente apreciar e apreender um quadro geral da existência digno de ser narrado –, desenvolvi um reflexo condicionado bastante comum: cada vez que me falavam dum suposto “novo autor”, sacava minha pistola.

Um pouco mais tarde, de volta a São Paulo, abdiquei momentaneamente de tal atitude apenas porque quem me falava de sua “maravilhosa amiga escritora” era minha então nova namorada. Ainda me lembro de folhear o tal livro com desdém, a foto duma mulher de trinta e poucos anos na orelha, aquela editora totalmente desconhecida, enfim, uma nova autora. E, motivado pela empolgação da figura, li o trecho de um conto – aparentemente mais uma enxurrada egóica – e, num final de semana, fui me encontrar com a tal literata. Uma chácara bonita, dezenas de cães e lá estava, virando copos de uísque, a mulher que estranhamente não tinha trinta, senão sessenta e oito anos de idade: Hilda Hilst. Juro, até 1998, este rato de biblioteca nunca ouvira falar dela, logo, estava diante duma “nova autora”. Ao menos para mim.

Com essa anedota, quero apenas dizer que, afora esse, não vejo nenhum outro significado na expressão “novo autor”. Novo é tão somente o que antes me era desconhecido. Autor é quem já é autor e não quem está em vias de tornar-se um. Em 1982, por exemplo, surgiu um novo autor de indiscutível talento: Bernardo Soares, aliás, mais um heterônimo de Fernando Pessoa parido pelo mais famoso baú português. E digo isso porque, segundo creio, um escritor de verdade é, no fundo, o mais intenso processo de criação ambulante e não apenas o conhecido autor deste ou daquele livrinho interessante.

O princípio de todo movimento artístico, de toda Cultura, de toda nova intuição, sempre vem pelo “verbo”, não importando o quanto possam reclamar os representantes de outros gêneros artísticos. Um Autor que surge é um grande acontecimento e, por isso, tal termo não deveria ser empregado indiscriminadamente a todo aquele que, tal como eu, escreveu meramente um ou dois livrinhos inteligentes.

Por sorte, eu fui tão irreverente com a Hilda Hilst – devo ter sido o primeiro em muitos anos que não se jogou a seus pés logo que a viu, e que tampouco pediu para que “pelo amor de Deus” comentasse meu livro (eu não tinha noção de quem ela era) – que fui convidado a morar consigo e ser seu secretário. Assim, durante pouco mais de dois anos, uma das minhas tarefas foi justamente o meu maior pesadelo: ler e selecionar os livros que pretensos “novos autores” enviavam para a mestra, ser uma “primeira instância”. (Se, entre 1998 e 2000, seu livro não foi lido por ela, culpe a mim.)

Hilda simplesmente não suportava ter de enfrentar pilhas e pilhas de buscadores de um empurrãozinho. Em geral, lia duas ou três páginas, fazia um muxoxo e voltava a reler suas biografias, suas hagiografias, seu Jorge de Lima. Uma das poucas “novas autoras”, que me lembro de ter recebido dela um elogio, foi Suzana Cano. Disse-me a Hilda: “Esta sim é uma escritora, Yuri”. Mas quem hoje em dia fala da Suzana? Praticamente ninguém. Isso importa? Não, porque quanto melhor for o potencial do escritor, de duas uma: ou ele levará anos para conseguir reunir todo seu instrumental interior e finalmente se expressar; ou, expressando-se com esmero já de início, levará anos para ser assimilado pela massa crítica de leitores necessária para alçá-lo à categoria de autor imprescindível. Curiosamente, a Hilda se encaixa no primeiro caso quanto à sua prosa e no segundo quanto à poesia.

Outro “novo autor” que conheci em 1998, no dia do meu vigésimo sétimo aniversário, e também na casa da Hilda, foi o poeta Bruno Tolentino. Não fiquei nada constrangido pelo fato de ele ter aparecido naquele dia e de ter participado da minha improvisada reunião de assopramento de velas. Eu não sabia quem ele era. Depois que ele se mudou para lá – morou na Casa do Sol durante uns sete meses – é que o fui descobrindo enquanto escritor. Descobrindo para mim, claro. Pois um “novo autor” é sempre uma descoberta, um desvelamento, não uma imposição de editoras, livrarias, publicidade e imprensa. Tampouco quero dar a impressão de que um “novo autor” deva ser necessariamente um autor grisalho com a obra já adiantada e, ao mesmo tempo, desconhecido. Não. Nas conversas que tive com Bruno, Hilda e com a Lygia Fagundes, vi que são eles todos unânimes num ponto: um autor de verdade é um autor nato. Como se o ser escritor fosse um “estado do ser” e não uma atividade: os livros são uma conseqüência da sua natureza interior.

Portanto, imagino que deva sim haver críticos, estudiosos ou sei lá eu, cuja missão seja aprender a detectar autores de verdade em obras iniciais, que saibam separar o joio banal do trigo potencial. Raymond Radiguet era um adolescente quando escreveu O Diabo no Corpo, mas já sabia dar aquele passo atrás e enquadrar da vida o máximo que podia e com um enfoque um pouco além do espírito da época precedente. Contudo, uma coisa posso garantir: não sou um destes detectores. Os livros de supostos “novos autores” lidos na casa da Hilda já me traumatizaram o suficiente. Se me empurrarem um destes, voltarei a sacar a minha pistola.

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Artigo publicado originalmente no Digestivo Cultural sob o título Se falam em autor novo, saco logo a minha pistola.

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