O Rolex e o Celular

Digamos, por motivos de pura ironia, que seu nome seja Christian, uma vez que se mostrou tão irritado — em outra conversa velha de um ano, e que agora não vem ao caso — ao tratar das “desprezíveis” raízes cristãs (the christian roots) do Ocidente. Christian, um diretor de cinema brasileiro, basicamente de curtas-metragens, me foi apresentando como sendo curador de uma relevante mostra de cinema do Rio de Janeiro. “Não se preocupe”, me disse, “pelo que ouvi falar a respeito do seu filme, com certeza irei gostar muito”. Eu não estava preocupado, mas quis saber o que ele ouvira. “Ué, bróder, me disseram que seu curta é uma porrada no estômago. Fiquei curioso. Se eu curtir, ele poderá ser selecionado pro meu festival.” Corria o ano de 2007, ano em que eu rodara meu filme Espelho, a suposta “porrada no estômago”, e, naquele momento, estávamos na festa de encerramento de mais uma edição da Goiânia Mostra Curtas, taças de vinho à mão, enquanto, ao nosso lado, uma fila se formava para o bufê que já começara a ser servido. Era noite e o pátio da Secretaria de Cultura estava abarrotado de cineastas, atores, políticos, empresários e culturetes em geral, todos muito satisfeitos em participar de um evento do gênero. Era como se uma atmosfera cosmopolitana tivesse subitamente descido sobre a cidade. Nada como testemunhar que o cinema goiano, em particular, e o brasileiro, em geral, parecia ter finalmente tomado impulso — muito embora não se soubesse exatamente em qual direção…

O rega-bofes patrocinado involuntariamente pelo contribuinte seguia seu curso, enquanto eu, Christian e o também cineasta João Novaes prosseguíamos rindo e conversando sobre temas diversos. A certa altura, lembrando-me da polêmica recente a respeito do sucesso do longa Tropa de Elite, decidi indagar:

“E aí, Christian, ¿você gostou do Tropa de Elite? Seria interessante saber de um cineasta carioca se o filme afinal é ou não é fiel à realidade.”

O cara mudou de cor instantaneamente, tornando-se branco, em seguida vermelho; então franziu o cenho e começou a disparar mil petardos contra o filme. Falava na velocidade de uma metralhadora, uma dessas que os traficantes costumam usar nos morros. Mais baixo do que eu, Christian às vezes me olhava por cima dos óculos, o que tornava suas sobrancelhas mais ameaçadoramente expressivas. Dizia que o “Tropa” era o filme mais mentiroso e ridículo de todos os tempos, uma enganação com DNA hollywoodiano à qual apenas a massa estúpida poderia dar algum crédito.

“Acho que então faço parte da ‘massa estúpida’”, comentei, “porque achei o filme excelente.”

Ah, para quê… Conforme se diz, foi como cutucar onça com vara curta. Numa fração de segundo, o tom avermelhado do rosto do meu interlocutor se intensificou, como se eu houvesse emitido um anátema contra o bom senso. Tentando ocultar sua indignação, ele abriu os braços, as palmas das mãos voltadas para cima, num gesto de condescendência.

“Você tá me zoando, né, Yuri.”

“Claro que não”, contestei. “O filme é muito bom mesmo.”

Ele arregalou os olhos e voltou à carga. Afirmou que, além de o filme ter uma estrutura pateticamente banal, nem sequer se salvava pela descrição fiel de uma suposta realidade. Simplesmente porque não havia realidade ali, mas apenas um libelo de direita contra a vida humana. Aqueles “fascistas” da “faca na caveira” eram uma vergonha em matéria de direitos humanos.

“Mas, até onde me lembro, ninguém se salva ali”, objetei. “O Padilha [diretor do filme] não toma partido de nenhum dos lados. Apenas descreve uma situação. Os bandidos também fazem pleno uso da violência, inclusive com o tal do ‘microondas’…”

“Aquilo é só pra massa se sentir vingada. O filme faz parecer que o Rio está tomado pela violência do narcotráfico e não é verdade.”

“Ah, ¿não?”

“Claro que não. Só ocorrem essas trocas de tiros quando rola alguma disputa entre os barões do tráfico. No dia a dia não é daquele jeito não. A mídia é que acentua essas coisas, esses casos isolados.”

“Bom, mas não há como o filme deixar de sublinhar essas coisas, já que fala do cotidiano de policiais.”

“É uma apologia barata da polícia.”

“¿Apologia, Christian?! ¿Mas como se o filme acaba com a polícia?! Mostra todos os podres, a corrupção, as safadezas, os conluios, tudo.”

“Tá, me expressei mal. É uma apologia do BOPE.”

“¿O quê?! Apologia é sinônimo de ‘elogio’, cara. Se você acha que é um elogio apresentar um grupo como sendo responsável por atos de tortura e execução sumária, então, não sei o que você consideraria uma injúria. Acho que, no fundo, o problema de quem tem uma opinião como a sua reside unicamente no fato de o filme tomar como protagonista, em vez dum bandido, dum pseudo-herói fora da lei, o Capitão Nascimento…”

Ele suspirou: “É um filme totalmente imbecil. Personagens rasos, estereotipados. Esse Capitão Nascimento então… pelo amor de Deus! ¿Que que é aquilo? Não há a menor profundidade no personagem, não há drama.”

Eu ri: “¿Não há drama?! O cara vive a um passo de levar um tiro fatal, enchendo a cuca de remédios, entrando em situações do tipo ‘ou mata, ou morre’, a mulher dele grávida, ¿e não há drama?”

“Drama é neguinho morar no morro e não ter uma renda mínima pra sobreviver…”

João Novaes começou a rir e me encarou, esperando minha reação. Apenas sorri. Já havia percebido onde a coisa poderia chegar. Resolvi me ater a questões estético-artísticas.

“Você diz que o filme é hollywoodiano. ¿O que há de hollywoodiano nele?”

Agora foi ele que sorriu: “E me disseram que você era um cara inteligente… ¿O que é que há de hollywodiano no Tropa?! Pega a narrativa, por exemplo. É a coisa mais besta do mundo, didática, a velha história do soldado sendo preparado para matar. Sempre a mesmice do começo-meio-fim, da historinha sem qualquer surpresa. Aquela coisa literária, explicadinha, pra gente burra poder entender…”

Bem, eu até poderia concordar — embora não me incomode em nada — que haja um excesso de narrativa em off no Tropa de Elite. Mas não era isso o que ele queria dizer. Veio então aquele discurso que ouço há anos contra o cinema narrativo, aquele papo mais pré-maturidade artística que conheço. Para ele, o cinema deveria sugerir mil sensações e idéias, e não ficar entregando tudo mastigado ao público. Sim, no fundo, a mesma crítica feita à prosa narrativa, à poesia narrativa, à pintura narrativa, à fotografia narrativa e por aí vai. Com essa idéia em mente, quem faz cinema acha que narração é coisa de literatura e quem faz literatura acha que é coisa de cinema. Bobagem. Porque, afinal, ¿o que é narrar? Narrar é dar sentido, é encontrar um nexo nos acontecimentos caóticos do mundo. Narrar é ser profundamente humano. Narrar é humano. E não é uma tarefa fácil e “mastigadinha”. Apenas uma pessoa que vive da visão, tal como um guia de montanha ou um desses índios rastreadores, consegue encontrar na bagunça da vida real, com suas múltiplas ocorrências e fenômenos, um fio de Ariadne. O mundo — a vida tal qual é — já é por si só um emaranhado infinito de impressões disparadas contra nossa capacidade intuitiva, contra nossa aptidão para apreender o Real. ¿Que diferença faz se um criador, seja lá em qual gênero artístico ele atue, apenas deseja acrescentar mais um elemento sensorial ao mundo? Um a mais, um a menos… ¿E daí? Ok, pode até ser uma postura legítima caso ele seja um decorador, um designer, um artista plástico, um estilista de moda, enfim, alguém cuja arte seja expressa espacialmente, ou melhor, sincronicamente. ¿Mas isso é postura para um autor de cinema e literatura, para um criador cuja arte se dá no tempo, isto é, diacronicamente? ¿Ser um decorador do tempo alheio? No fundo, ele deixa de ser artista e se torna um artesão raso, com a diferença de que se torna um artesão com um ego enorme. É como se o artista criador de impressões sensoriais — de “poesia”, acredita ele — não fosse senão mais um elemento da natureza, uma margarida, um lírio, um pavão. Ele deixa de ser um observador lúcido da vida (um autor) e se torna mais um figurante do mundo, tal como aqueles “gênios” ridículos que povoam, com ironia sem par, os filmes NARRATIVOS e extremamentes brilhantes do Woody Allen, esse protagonista da própria vida. (Bem, ao menos era assim em seus filmes mais antigos.) A arte desses pseudo-artistas anti-narrativa se resume em aumentar o número de impressões sensoriais que o receptor irá ter, sem, no entanto, se dar conta de que uma escalada à montanha ou a exploração de uma caverna são muito mais eficazes nesse quesito. ¿Para que ir a uma exposição de arte ou a uma exibição de filmes causadores de impressões sensoriais se um passeio na praia é muito mais satisfatório e impressionante? Ao caminhar pela praia, cada grãozinho de areia acaricia meus pés, cada lufada de vento inunda minhas narinas de maresia e meu corpo de alívio, cada raio de sol aquece a minha alma, cada gota azul-esverdeada é um prazer para meus olhos. ¿Há “instalação” melhor que uma praia? Até mesmo um jornal nos transmite mais impressões e significados que a arte de quem é incapaz de ver um sentido no mundo ou nas decisões tomadas por esta ou aquela pessoa. É como se, para esse pseudo-artista, não houvesse, não direi humanidade, mas a noção clara do que é ser uma pessoa humana.

Desde tempos imemoriais é a narrativa — seja ela oral, escrita, encenada ou gravada — quem atribui sentido (significado!) ao mundo e à vida. Todo mito é uma narrativa, toda revelação religiosa é uma narrativa, toda pessoa, um ser que foi, é e será, ou seja, uma narrativa para si mesma e para os demais, um vetor. A vida é movimento e é o movimento quem nos traz o conceito de tempo. A civilização se dispõe sobre um chão narrativo onde um nexo compreensivo de causas e efeitos pode nos levar a uma vida plena de sentido. Não é nada diferente disso, não somos meros animais. Narrar é descrever essa trajetória do homem no tempo, é revelar o caminho que ele percorreu e suas possibilidades futuras. Se a poesia verdadeira nos dá vislumbres da eternidade, que é atemporal, a pseudo-poesia dos anti-narrativos, no fundo, só nos brinda com a estagnação, com a expressão de uma situação masturbatória que não vai a lugar algum. Ela faz recortes no tempo, mas não o transcende. Artistas assim acabam sendo paisagem para o Artista real, que é um viajante, que se movimenta no tempo com a cabeça na eternidade. O Artista com A maiúsculo é um Autor, não apenas o personagem dum livro de viagens alheio. Contudo, não quero também afirmar que é papel do artista narrador apenas ensinar ou pregar um caminho — O Sentido —, mas principalmente mostrar aonde leva o sentido adotado por seus personagens através de suas respectivas decisões conscientes. Alguns personagens adotam o sentido geral, tradicional, outros o tangenciam e alguns vão simplesmente contra a corrente. Existem conflitos, embates de forças, competição e cooperação de sentidos. A vida é tensa. ¿O que é a Tragédia, em termos estéticos, senão uma narrativa cujo sentido das decisões tomadas pelo protagonista pode levar ao extermínio da sua própria consciência, do seu próprio significado? O artista deveria expressar, da melhor maneira possível, suas reações às impressões que recebe do mundo e não simplesmente criar mais impressões, deixando de se sobressair ao fundo caótico das coisas. Como escreveu Fernando Pessoa, “faça o romance antes que ele lhe seja feito”.

“Agora, o mais absurdo”, prosseguia Christian, “é essa idéia de que a gente é cúmplice do narcotráfico.”

“¿Como é que é? ¿A gente?”

O João voltou a dar risadas.

“É, a sociedade. É uma palhaçada colocar os estudantes como financiadores dos traficantes.”

“Hum, sei.”

Ele havia voltado às questões, digamos, ideológicas do filme. E o cara me pareceu pessoalmente ofendido com as cenas em que usuários de drogas são coagidos pelo policial André Matias. No fundo, ocorrera uma identificação com esses usuários, mas ele era incapaz de assumi-la e muito menos de transcendê-la. Ora, o filme simplesmente expõe um nexo causal ululantemente óbvio: o usuário compra a droga, o traficante usa o mesmo dinheiro para comprar armas. Simples assim. Mas isso, para ele, não passava de uma “interpretação”, de uma opinião do roteirista. É como se a lúcida observação da realidade não fosse possível, como se não houvesse maneira de encarar a vida sem uma ideologia de fundo. Para ele, o que você vê não é o que você vê, mas o que pensa que vê.

“Esses caras do BOPE merecem é levar bala mesmo…”

“¿Que papo é esse, Christian?… ¿E os direitos humanos? Agora você é que está sendo o fascista.”

“¿Fascista?! ¿Eu?! Claro que não!”

“Você me deu a entender que fascistas são esses caras que apelam à violência…”

“Não, Yuri, fascistas são esses caras que estão aí só pra garantir aos riquinhos que eles poderão continuar nessa sociedade de consumo criminosa, nesse capitalismo selvagem… É isso mesmo, cumpadi, fascista tem de se ferrar.”

“Ah, saquei: então matar um policial, pode, né. O terrível aí não é o assassinato, mas sim aquilo que o motiva, né.”

“É óbvio.”

Mais um relativista absoluto, pensei. Consumir drogas, beleza. Consumir outras coisas, ah, aí não. “¿Que mania é essa que riquinho tem de consumir, hem?” Puts… ¿Será assim tão difícil compreender que o consumo, em si, não tem nada de negativo? ¿Que o problema é o exagero? Hannah Arendt, por exemplo, coloca o consumo como um dos aspectos inalienáveis d’A Condição Humana. E, naquele momento, enquanto essas idéias me assediavam, me veio à lembrança o caso ocorrido dias antes, a saber: o assalto sofrido pelo apresentador Luciano Huck, o qual lhe custou um Rolex e a absurda situação de ter de defender seu direito de se indignar com o crime sofrido.

“Christian, me diz aí, só pra eu entender claramente como funciona o seu raciocínio: ¿por acaso você acha que o Luciano Huck mereceu ser assaltado?”

Ele quase entrou em êxtase: “É óbvio que sim!!! Deveriam ter roubado tudo dele, não só o relógio! É uma afronta, é uma ofensa terrível comprar e ostentar um relógio caríssimo como esse num lugar tão cheio de gente pobre. Pô, aquele relógio dava para alimentar um monte de criança por meses, dava para construir uma casa no morro com ele. E o imbecil do Huck ainda vai chorar no jornal! É um absurdo”.

Eu: “Mas, Christian, o Rolex foi um presente da mulher dele, da Angélica. ¿Ele não tem o direito de usar algo comprado com dinheiro honesto?”

“¿Honesto??! O programa desses dois é pura embromação, é só uma forma de manter a galera hipnotizada, letárgica, alienada.”

“Cara, não interessa se o programa deles é bom ou ruim. Sem a propriedade privada, não há sociedade que se sustente. Ela pode não ser um princípio absoluto, mas é estritamente necessária e fundamental. Sem respeito à propriedade, não há liberdade.”

“¿Liberdade?! ¿Propriedade privada?! Propriedade privada é roubo! Só isso: rou-bo!”

Fiquei de cara: “Propriedade privada é roubo!”, repeti interiormente. “Essa é muito boa…” E eu, que já havia tomado umas três ou quatro taças de vinho, comecei a ter, numa velocidade incrível, idéias maquiavélicas, sacanas, didáticas. Por dentro, eu já queria rir. É sempre muito engraçado observar o comportamento da dita “esquerda festiva”. O pior é que, enquanto esquerda, o pensamento dos “festivos” é atrasadíssimo. A esquerda mundial percebeu, há um bom tempo, que é necessário manter um mínimo de propriedade privada, afinal, é preciso comprar as consciências dos intelectuais, dos militantes e dos demais cidadãos. E socialismo não é senão capitalismo de estado. ¿O que é a China senão um Estado socialista que usa a prosperidade capitalista para comprar consciências? ¿Quer ter um carro? Ok, mas não escreva num blog o que você pensa sobre o sistema. ¿Quer ter um laptop? Beleza, mas não pesquise sobre a Falun Gong no Google. Tenha, possua, mas não investigue, mas não busque e muito menos expresse a verdade sobre as coisas. Da mesma forma o Mensalão e o Bolsa Família. ¿Quer dominar e tomar em suas mãos todo o Estado? Corrompa e compre a consciência do Legislativo, os representantes do povo — compre a consciência do povo! O último alvo de uma “revolução” assim não é a propriedade privada: é a consciência de cada um, último bastião da soberania do indivíduo. Daí ser imperativo estimular cada pessoa a mentir a si mesma: “Estou vendo isso, mas não é verdade”. Ou ainda: “Estou vendo isso, mas, como tudo é relativo, para cada um significa uma coisa. Roubar nem sempre é roubar, e preciso garantir o meu”.

“Então”, repeti calmamente, “¿toda propriedade privada é roubo?”

“Claro que sim. Se não houvesse propriedade privada, não haveria explorados e exploradores.”

Nos encaramos por alguns segundos bastante tensos. Um silêncio se interpôs e o João Novaes, numa tentativa de “deixa disso”, desviou a conversa para outros lados. Fiquei ali, na minha, a observar Christian atentamente, enquanto os dois papeavam sobre sei lá o quê. A certa altura, notei um volume no bolso esquerdo dele. Não, não era o pinto do figura, mas sim um telefone celular. Sem pensar um segundo sequer, eu, que sou do tipo que ultrapassa limites convencionais quando bebe, avancei e passei a apalpar o bolso do cara. Ele arregalou os olhos como se estivesse sendo assediado por uma bicha louca: “Pô, cumpadi, ¿que é isso?! Sai fora, mermão!!”, e tentou se afastar.

“Calma, meu, só quero ver seu celular. ¿É um celular, né?”

Com uma expressão entre atordoada e aliviada, meteu a mão no próprio bolso e me entregou o celular: “É sim, pode olhar, porra. Mas, por favor, pára de me tocar! Parece maluco!!”

E eu, todo inocente: “Nossa, que bacana, ¿ele envia emails?”

“Envia, recebe, entra na internet…”

“¿Fotografa?”

“Fotografa, grava vídeos…”, respondeu aborrecido.

Eu então retirei meu celular do bolso: “O meu é GSM, mas é desses mais antigos, tem quase quatro anos já. O monitor nem é colorido.”

“Sei…”, atalhou com enorme falta de interesse.

O João, com um olhar irônico e expectante, apreciava a cena, levando os olhos alternadamente de um interlocutor ao outro.

“Muito bacana mesmo…”, concluí sorrindo. “Vou ficar com ele”, sentenciei, e guardei o celular dele no meu bolso.

“¿O quê?!!!”, gritou ele. “¿Você ficou maluco, bicho?”

“¿Eu? Claro que não. Meu celular tá velho, as teclas tão com mau contato. Eu sei que você anda ganhando super bem lá no Rio, seu site tá bombando. Já eu, saí de São Paulo e tô vivendo como freelancer num mercado restrito como o de Goiânia. A coisa tá preta. Seu celular é meu agora, preciso dele mais do que você.”

Ele voltou a ficar roxo, nitidamente enfurecido: “Não, senhor, devolve já o meu celular!”, e avançou numa tentativa de tomá-lo das minhas mãos.

“¿Seu celular?”, retruquei, me esquivando. “¿Você vai querer me roubar agora? Propriedade privada é roubo, Christian…”

Ele quase sofreu um acidente vascular. Seu olhar traduzia claramente sua confusão mental. O jogo de xadrez havia chegado ao fim e ele não via outra saída senão deitar o rei. Mas a raiva que sentia, o orgulho ferido não lhe permitiu qualquer atitude cavalheiresca.

E então, como golpe de misericórdia, acrescentei: “Se você quiser, você pode ficar com o meu até adquirir outro… Olha que legal: tem até uma imagem de Jesus atrás dele, uma que comprei no Mercado Mundo Mix de São Paulo, toda brilhante. Tudo a ver com seu nome cristão…”

“Aaaaah!! Não quero!!”, rosnou entre dentes, empurrando minha mão. “Fica com o meu então, caraaalho!!” e, virando-me as costas, saiu pisando duro, causando no recinto tremores que apenas eu e João sentimos. João, aliás, caiu na gargalhada: “Ah, não, Yuri! Não acredito que você fez isso, cara!! O figura vai querer te matar agora…”

“Vai nada”, respondi.

“¿Você não vai devolver?”

“Ué, João, ¿você não entendeu?”, e dei uma piscadinha: “O celular agora é meu”.

“Vamo beber! Vamo beber!”, sugeriu ele, rindo.

Dali em diante, só voltei a ver Christian mais umas duas vezes, de longe. Numa delas, me aproximei, peguei o celular dele e, enquanto ele estendia a mão para recebê-lo de volta, falei: “Não, não estou devolvendo. Só quero saber o seguinte: se o telefone tocar, ¿eu anoto o recado pra você ou posso simplesmente dizer que o celular agora é meu?”

“Ah, merda pra você, cara…”, tornou ele, se afastando, pê da vida. Parece que foi nessa hora que ele foi perguntar ao João se eu era louco.

Daí em diante, conheci mais um monte de gente, conversei e ri até ficar sem voz, ceei, dancei e assim por diante. Claro, também ouvi muitas críticas e elogios ao meu curta-metragem, sempre mantendo a taça de vinho à mão. (Baco é um cara legal para quem sabe lidar com ele.) Bom, o fato é que, mais de uma hora depois, o Christian se aproximou para conversar. E me pediu desculpas! Disse que havia se exaltado, que discussões políticas sempre o deixavam esquentado e coisa e tal. Sim, ele estava louco para reaver seu celular. Mas não tinha moral para exigi-lo.

“Christian”, comecei, encarando-o, a mão em seu ombro. “Eu fui com a sua cara já no ano passado, quando nos conhecemos. Não é minha intenção irritá-lo e muito menos iniciar uma relação de inimizade com você. Tudo o que eu quis foi mostrar que as nossas idéias têm conseqüências. Eu não fiz nada que estivesse em desacordo com seus princípios. Eu não lhe impus minha ideologia: eu lhe impus a sua ideologia. ¿Doeu? ¿Por que teria sido diferente para o Luciano Huck? ¿A sua propriedade é mais privada do que a dele só porque você não é tão rico? ¿Quem pode decidir qual propriedade é mais privada que outra? Enfim, a idéia foi sua. Se você não estava apto a sustentá-la, era esse um problema apenas seu. Olha, eu tanto quero ficar de boa com você que irei trocar o meu celular” — e lhe estendi o celular dele mesmo — “pela sua amizade. ¿Topa?”

“Topo”, respondeu aliviadíssimo, recuperando sua bem amada propriedade privada.

E, depois disso tudo, adivinhe se ele selecionou meu curta-metragem para a mostra que organiza…

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