No Instituto de Artes da UnB, cursei Fundamentos da Linguagem com a falecida professora Nena Leonardi. Embora ela adorasse lembrar fatos tais como sua fuga do Brasil nos anos 1960, seus terríveis dias de exílio, a ocasião em que quase fora fuzilada – salvo engano, no Chile -, sua chegada a Paris em pleno Maio de 1968, as diversas reuniões a que compareceu no apartamento de Sartre e Beauvoir, e assim por diante, apesar de todas essas lembranças, Nena jamais falava de política em suas aulas e, segundo pude perceber, foi uma subversiva mais por amor ao seu marido (um professor de história) do que por paixão a uma ideologia. Nena era uma junguiana e baseava seus estudos de linguagem nessa linha da psicologia. E é por me lembrar de suas aulas que digo: Hugo Chávez cometeu um “ato falho junguiano” ao modificar o Escudo de Armas da Venezuela.
Nas aulas de Fundamentos da Linguagem, durante mais ou menos os dois primeiros meses, eu e meus colegas fomos bombardeados com uma interminável preleção sobre o simbolismo do Tarô. No princípio, em minha ingenuidade arrogante, achei que tudo aquilo não passava duma forma malandra de a Nena mesclar hobby e trabalho. Eu me sentia como se tivesse ido à universidade estudar física quântica e, em vez disso, não recebesse senão aulas de esoterismo barato. Mas, felizmente, um dia caiu a ficha. (Hoje, por exemplo, considero “Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô” – autor anônimo – não apenas um dos melhores livros sobre hermetismo, mística, religião e filosofia que já li na vida, mas sobretudo um dos melhores livros que já li.) No entanto, para a presente questão – a mudança do Escudo venezuelano perpetrada por Chávez – quero me centrar meramente num pequeno detalhe, o mesmo pelo qual o Tarô toca a heráldica e, de quebra, estabelece uma pequena confusão.
Hugo Chávez, para quem não viu, modificou o Escudo de Armas do seu país, colocando o cavalo branco – que antes corria da esquerda para a direita de quem olha (mas com o rosto voltado para trás) – por um cavalo que corre da direita para a esquerda e que olha para frente. A interpretação mais simplista – provavelmente a mais próxima da mentalidade dele, Chávez – é esta: agora vamos avançar rapidamente para a esquerda, nosso passado nada significa. Sua declaração oficial é a de que a nova posição do cavalo representa
“el retorno de Bolívar de su sueño originario y el retorno de Miranda”.
Nas cartas de Tarô, a leitura é como na escrita ocidental: a linha do tempo vai da esquerda para a direita, ou seja, quando um personagem olha para a direita do observador, olha para o futuro, quando caminha para a esquerda, caminha para o passado. Tudo no Escudo de Armas da Venezuela indica que a imagem foi feita como se tratasse duma carta de Tarô: o cavalo corria para o futuro sem perder de vista suas tradições, o seu passado. (Aliás, procedimento esse dos mais saudáveis.) O grande porém do presente caso é que, na heráldica, tudo se inverte. A imagem do Escudo tem como ponto de referência não o observador externo, mas o cavaleiro que o sustenta. Ora, trata-se dum escudo comum. Assim, nele, caminha realmente para a direita o personagem ou animal que caminha para a esquerda do observador, isto é, para a esquerda de quem está de frente para o cavaleiro armado. Isto pode ser verificado em qualquer tratado de heráldica e, provavelmente, em muitos sites sérios na internet que porventura tratem do assunto. Tanto que a maioria dos Escudos sempre trazem elmos, dragões, leões e assim por diante, que olham para a nossa esquerda, enfim, para a direita do soldado, e isto simplesmente porque olham o futuro. Daí o fato de o antigo Escudo de Armas da Venezuela causar espécie: o cavalo corria para o passado, o olhar apontado para o futuro, provavelmente a sentir saudades do que nunca viveu…
Por isso digo: Hugo Chávez marcou, inconscientemente, um gol contra simbólico. É como se o cavalo do escudo anterior tivesse finalmente chegado ao fundo do poço, a um beco sem saída – o governo Chávez – e, desesperado, finalmente retomasse a direção correta. Aquele antigo percurso já deu onde tinha que dar.
Ou, agora me dirijo aos fãs de Chávez, o “ato falho” é realmente um ato falho, isto é, vocês pensam que o autoritário presidente representa o que há de mais bonito e puro no progressismo, no esquerdismo, mas, no final das contas, irão ver é aquilo que mais temem da famigerada “direita” que tanto odeiam: o puro e simples totalitarismo.
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