Hoje foi um daqueles dias em que acordei botando fogo pelas ventas, com ódio amargo contra toda a humanidade, o que evidentemente inclui a mim mesmo, já que também eu faço parte dessa malta fedida. Na cama, quando me deparei comigo, só de raiva, quase me mordi. Cara chato que não larga do meu pé interior. Pois é, assim fui passando o dia. E olha que nem estou na minha casa, mas na de amigos. Eu e o Jorge Recóndito, o desgraçado, meu Mister Hyde particular. Logo de cara, já fui implicando — por dentro, por dentro, discreto, sem fazer propaganda — com a babá desses meus amigos, que não pára de falar, o volume no máximo, sempre a distrair o nenê, que se chama Luca, mas que ela evangelicamente trata por Lucas. Às vezes vem me dar recados do dia anterior, mas cada informação que me passa todo o quarteirão registra. Só fala em caixa alta: SEU YURI, ONTEM, QUANDO O SENHOR NÃO TAVA AQUI, LIGOU UM AMIGO SEU. Talvez o bebê goste disso. Eu não. Hoje respondi pequenininho, uma carranca horrorosa: tá, tá. Talvez a tenha assustado. Em sua santa ingenuidade de babá infantilizada, talvez não imaginasse que um cara TÃO LEGAL, TÃO GENTE BOA, TÃO GENTLEMAN (puts, ela jamais diria isto), enfim, TÃO BACANA fosse capaz de semelhante esgar, de tão feia careta.
Passo pela estante, colho ao acaso um livro onde há uma novela do Mark Twain da qual nunca ouvira falar. Abro-o e leio sobre certa população de certa cidadezinha e seu receio a certo padre porque este, ao reverso do comum da gente, não tinha medo do Diabo. Antes, xingava-o de todos os nomes, afastando involuntariamente de perto de si aos supersticiosos que temiam uma catástrofe vingativa do capeta. Rio por dentro pela primeira vez no dia, identificado com o padre. Dia bosta, diabo está. Diabo filho-da-puta, concluo e emito meu primeiro sorriso. Meio sinistro, mas, enfim, um sorriso prazeiroso, temerário.
Antes de ir ao estúdio, ouço a lenga-lenga sobre a hora marcada que a babá tem com o médico, que por isso precisará sair mais cedo e tal. Os vizinhos certamente se inteiram do ASSUNTO ao instante. Começo a desconfiar de conspirações maquiavélicas que mais um telefonema vem confirmar: SEU YURI, O SENHOR PODE FICAR COM O BEBÊ ATÉ A JOANA CHEGAR? E me vem à mente as outras duas meias-horas nas quais caí: uma tranqüila e mesmo divertida, na qual bati altos papos sensoriais com o moleque; outra de hora e meia, há apenas um dia, na qual descobri o tal inferno, digo, paraíso em que as mães padecem: chora no colo, chora no chão, chora no carrinho, esperneia no berço, berra no tapete e nenhum buraco sem grades nessa casa paulistana de alcovas para me livrar do garoto. Dia desses me disse o Dante, pai do Luca: “Descobri que o sorriso da criança é uma autodefesa — tem dia que é a única coisa que nos impede de jogá-la pela janela”. E ontem o figurinha nem sequer me sorriu, conforme costume. Doente e tal, não sabia o risco que corria. Mas desta vez, conhecedor dos perigos, telefonei para o estúdio. Ouvi: “¿E aí? ¿Dá pra ficar com ele uma meia horinha?” E eu, com as unhas do senhor Recóndito penetrando em meu fígado: Bom, hoje acordei enojado com o mundo. Se você não se importar de deixar o mingau com o lobo mau… Os pais apareceram em quatro minutos e meio. É bom saber me expressar.
E, finalmente, para gáudio estético e refrigério da cabeça de cima, e gládio tentador para a de baixo, chego no estúdio e me deparo com Mona e sua coleguinha, ambas modelos da agência L’Equipe, diante do fundo infinito, preparadas para a sessão de fotos de lingerie do catálogo do Carrefour. Diz o composite desta homônima da amante judia de Henry Miller: altura 1.70, manequim 36, busto 88, cintura 61, quadril 93, sapatos 38, olhos verdes, cabelos castanhos escuros. Ai… Uma delas, diante do meu olhar de Mister Hyde, sorri. Algumas mulheres parecem gostar de apanhar com os olhos. Se eu estivesse alegrinho, seria ignorado. Nada como uma hora após a outra.