Cartontinha de Amor

Querida amiguinha

Na esperulunca do Magrabá, eu parei e pensei: “eu vou ou eu fui? E ela? Veio-me?” Andando, reparei numa mancha do sapato – seria sangue? Não, era mais claro que língua. Será que havia chutado uma rosa? Sem obter resposta, continuei pisando o mundo pra trás. Aí, chegando ao redondoporto, eu não entendi o céu e achei que devia ter rasgado a cartonta, afinal, não dizia nada, como tudo mais. “Uma serenata!”, cabecei, “uma serenata era o que devia ter sido. Desafinar debaixo do bloco seria bom, seria bonito, acordar os mortos e também metade minha”.

No espaço-tum-redondo do morófo-mófo, vi que eu era sempre aquilo ali. Olhei-me e tive certeza, eu era aquilo sim. Estrelas eu via enquanto era andado por outros e ladeado por ainda outros, que andavam com os próprios redondos, pois esta cidade não aceita pés. Não era dono do bolso por isso não tinha meus redondos. “Mas por que não sou dono de minhas próprias algibeiras?”, cabeçava enquanto olhava as figueiras que passavam, mas que ali não estavam, pois mesmo que por ali houvesse figueiras, o que me parecia pouco provável, eu não as reconheceria. Mas olhava minhas figueiras, que eram azuis e não davam figos, senão jacas, e que, por isso mesmo, estavam tão abatidas, coitadas! Eu, árvore frutífera que não decide quais frutos dar, invejava a coragem das figueiras de contrariar lógicas e concepções alheias, além de curvarem-se digna e orgulhosamente por seus frutos.

Nos redondoportos das vigas-passagens-concrétovas, vi redondos públicos apinhados de como-eus, mas não sei se me importava com eles ou não. Será que pensar nos problemas de um, que é semelhante a outros, e querer vomita-los em e por todos, é egoísmo? Há também, por aí, tantas como-tu – por que devo concentrar meu amor? Biegoísmo? Isto faz meu amor parecer tão imperfeito que me dá ganas de chorar. Porém paro nas ganas, pois sei que minha flor, em terreno e clima apropriados, não é imperfeita, assim como a tua, amiguinha, também não há de ser.

Entre dois como-eus, esperando o preciso redondo público, lembrei-me do que testemunhei na Wagner Trigo do Sul: uma como-eu cuspiu-se no passa-redondo e quase foi arredondada por um, e por outro, e ainda outro, particulares. Foi cena patética: tentou matar-se e rompeu a estrutura pernal direita. Seus ai!migos a levaram pruma oficina de gente. Eu, de longe – a uns dez málacons – só assisti, com a desculpa velha e conveniente de que outros quinze como-eus, conhecidos dela, ali estavam. Tudo isto pra dizer como parece sem sentido o drama alheio conhecido apenas em seu paroxismo. Talvez, se nos assistíssemos por fora, tomássemos jeito e não tentaríamos, pois, nos matar por inteiro.

Bueno, da mesma forma que sempre nos sentamos, acabamos levantando um dia. Então andei e vi que algo vazava deixando uma trilha por onde eu passasse, no caso, pelo caminho do lar. (Queria que fosse do mar mas infelizmente não era.) Olhei: “o que é isto?!”, cabecei comigo.

– É a tua senda – devolveu uma voz misteriosa.

– Mas quê senda se nem sequer comecei a andar? – indaguei enquanto procurava a câmera do Topa Tudo por Dinheiro.

– Tu não começas nem terminas nada, pois não há princípio nem fim, logo, já deverias traçar bem o caminho dado.

– Não venhas que essa eu já cansei de ouvir!

A voz disse:

– Se assim agires e não te aceitares como manifestação do Completo, começarás o único caminho que pode ser iniciado: o Naraka Loka…

Eu, preocupado que estava contigo, amiguinha, comecei a rir:

– Que diabo de caminho é esse?

– É o próprio!! – respondeu, largando-se, seja lá o que fosse, no espaço, casquinando em meio a uma língua de fogo. Fiquei tão assustado que, já em minha máquina de morar, me tranquei na sala do trono cheiroso: “será que agora dei pra remedar o Blake?!”, cabecei.

Na sala rococô do trono cheiroso, apesar de todo aroma, ajoelhei e orei. Se sou Uno-Com-O-Outro, poderia orar sinceramente comigo mesmo, pois precisava, estava tão amedrontado como se houvesse assistido a quinhentos e setenta e oito Sexta-feiras 13, a setenta e três filmes de vampiro ou a duas novelas mexicanas. Lembrei-me então de ti, amiguinha, e fiquei em paz, orando também por ti, pois sei que tu ficarias contente com isso. Aí, eu viciei e orei por outras amigas (tão lindas quanto tu) e por amigos, coitados, que também são gente. Então, de repente, da água do trono uma enorme barata emergiu e disse:

– Preocupa-te apenas com o que está ao teu alcance, com teu bem-estar e amor, e todos estarão bem!

– Sai, bicho escroto!! – gritei enojado, afastando-me. -Pensas que darei ouvidos a um ser asqueroso com tu?!

Ela virou-se e falou-me pelo cu peidante:

– As palavras só valem se por trás trazem amor; o feio e o belo complementam o mesmo Ser Infinito; o bom e o mau são duas faces da mesma ficha telefônica; a boca e o cu estão no santo, no assassino e na moça bonita! A propósito: vim enfeitar teu lar! – E sacudindo-se para mim: – Beije-me!

Eu a beijei e ela se foi, murmurando em meio às borbulhas:

– Ela está magoada contigo…

Então, continuei a oração por Todo-elæ e, ao terminar, uma lágrima me fugiu: “Ela está magoada!”

Subi, cabeçativo, ao quazum dos quatro leitos e dali contemplei o verde que bate folhosamente ao cristal da falsa abertura. Por ali, vi também que esvoejava um lambe-flor, distribuindo carícias, deixando coradas as corolas e manchadas de roxo vinoso os cálices das flores. Era magnífico. Confundindo-me, talvez, com uma flor, invadiu meu espaço (meu espaço?), e veio ter comigo, bico com bico, pois eu fazia bico imitando um hibisco com intenção de ludibriá-lo.

– Pois nós já não nos beijamos? – perguntou-me ele.

– Já?! – espantei-me.

– Já, agora há pouco, na sala rococô – disse, zumbindo asas. – Ainda posso sentir teus lábios…

– Meu Deus! – exclamei – mas era uma barata!

– Meu querido – fitou-me nos olhos – não quebres o ser em pedacinhos; foi eu que te beijei sem dúvida alguma. Também tu beijaste a ti mesmo, comungando, assim, com teu lado mais desprezível.

– Não consigo entender…

– Tu irás sentir… Tu irás aceitar… – e saiu.

Vi, pois, as manifestações vegetais do Ser movendo-se tão harmoniosa e belamente lá fora (que também é aqui dentro) que me senti derreter, entregando-me ao prazer do existir.

– Esta é uma das vezes em que mais completamente te entregas a Deus! – gritou-me ainda o lambe-flor.

– Mas eu já neguei a Deus! – gritei-lhe.

– Não se nega a Deus, pois só se nega aquilo que se conhece e Deus está além de todo conhecimento, idéia ou concepção, Ele está em tudo e tudo está n’Ele, nunca nasceu nem nunca morrerá, porque apenas é, sempre foi e sempre será. Tudo o que você negar é falso e deve realmente ser negado.

– Não posso aceitar o que me dizes, para mim Deus representa apenas decepções…

– Então, chama-O de Absoluto, Tao, Quao, Todo-Foderoso, Brahman, Antártican, Uno ou O Infinito Pastelão, ou melhor ainda, não o chame de nada, viva-O! – dizendo isto, voou para longe e vi que me amava, pois planava lindamente. O vento, porém, zunia de tristeza: “Ela esssssssstá magoada…”

“Parece que estou num desenho animado”, cabecei comigo, “devo estar finalmente tré-lé-lé”.
Lembrei-me, pois, amiguinha, de quando tu vives realidades no ator-tódromo. “Estão todos encenando para mim”, cerebrei, sentindo-me feliz e importante. Mas não encenavam, agora percebo, para mim, senão simplesmente o Infinito Pastelão encena para Si Mesmo, e tudo é uma bonita ilusão, da qual, mais cedo ou mais tarde, nos damos conta. Foi aí que pensei em apresentar uma peça pra terratro, na minhocona da Goonie-ver-cidade, que se chamaria: “Não consigo mais suportar isso!” Fecharíamos as portas e provocaríamos terroristicamente o lado morto das personas. Quem quisesse sair deveria ou gritar “não consigo mais suportar isso!, a plenos pulmões, ou pagar a entrada.

Viajei por tudo isso ereto nos pés, enquanto visualizava o exterior – na verdade apenas uma reação dentro de mim, assim como eu também sou uma nele. Ora, ao cerebrar isso tudo, fiquei cansado e me atirei no macio de dormir, pensando que – depois de tantas experiências religariosas, se é que conversar com um cu barato pode ser assim classificado – eu corria o risco de virar santo.

Foi então que tu chegaste:

– :)) – sorriste com os olhos.

– E aí? – disse eu, para provocar.

– Tu és tão pueril – disseste, aproximando-te.

– Não escutei o carro.

– Não tenho carro…

– Eu sei, é da tua mãe…

– Não tenho mãe – balbuciaste, interrompendo-me.

Sorri, cúmplice, e fui te abraçar. Tu, porém, me lançaste olhos gélidos e eu me lembrei da cartonta que acabara de deixar na tua máquina de morar.

– M.

– Meu nome não é M. – disseste secamente.

Olhei, pois, para teus pés e vi que não tocavam o chão.

– Quem és tu?! – perguntei trespatado de medo.

– Me pegas no colo? – disseste languidamente.

Obedeci e não tinhas peso, eras tão somente amor e beleza. Coloquei-te, logo, no meu macio de dormir e tu me beijaste os olhos e os arr-unhões das costas, que, aliás, pararam de arder. Ficamos nus, abraçados, completos, sem ganas de orgasmos: assim adormecemos. Sonhei que tinha, na mão esquerda crispada, uma dia-amante que tentava a todo custo proteger, pois não queria que se desfizesse em cacos. Passei ainda por muitas atribulações e a dia-amante quabrou-se em três pedaços. Olhava-os com tristeza, sem entender por quê. Acordei de madrugada e, angustiado, procurei minhas dia-amantes no macio de dormir sem, contudo, encontrá-los. Um pernalongalado, por fora do cortinado, casquinava troçando de mim:

– Tonto! Rude! Crias que a carregavas na mão direita? Nécio, tu a carregavas na esquerda, a mais próxima do coração. – E enfurecido: – Como pudeste deixá-la quebrar-se três mil vezes?! Tivesse eu semelhante gema preciosa, todo aquele sangue… – confessou, batendo asas.

– Espere!- gritei, mas ele se foi.

Com isso, eu me encolhi como o feto que, de fato, quer voltar ao útero. E chorei. Já não sabia quando sonhava, quando não. Fiquei triste até as lágrimas secarem e, então, franzi escorpionicamente o cenho. Com força boquejei:

– Nós ainda estamos nos beijando, eu o sinto! – e levantei-me.

Porém, na sentadeiro junto ao escreverófilos tablares, após provocar os fótons, comecei a temer a loucura: “Tanta gente no mundo com atitudes palpáveis, relevantes e eu preocupado com devaneios”. O aspecto luminoso das coisas colocáva-me ainda mais a cabeça à roda. “A luz de que tanto falam é esta mesmo!”, murmurei, um sorriso na cara. Logo, senti vontade de escrever-te, amiguinha, sentia que te devia algo mais carinhoso, mais verdadeiro e comecei esta outra cartontinha. Resolvi que contaria toda a minha saga-gagá, desde o momento em que entregara a venenosa cartonta até meu despertar na madrugada. Não ficou bom mas ficou melhor que a anterior, disto eu tenho certeza.

Te abraço
Te lambo
Te beijo
Te jogo pro Céu
Te eu
Te zão
Yuri

(Brasília 11-XII-1993)

_____

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos (F.P.), 21-10-1935

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