DESDE CRIANÇA, Frida sempre se interessou pelos mistérios que cercam a vida humana. A morte, a alma, a magia, a reencarnação, a astrologia, Deus, a cabala, o sufismo, os ovnis, a alquimia, o intricado funcionamento de um computador, tudo a deixava intrigada e deslumbrada ao mesmo tempo. Mas o que mais atiçava sua curiosidade era descobrir quem ela realmente era – o mistério do autoconhecimento. Quando pequenina, Tábatha, sua mãe, lia para ela estórias maravilhosas de fadas, princesas, bruxas, príncipes e dragões. Aos quatro anos, Frida tinha certeza: era uma princesa. Aos oito começou a achar esse negócio de princesa uma chatice, ficar ali a eternidade toda, sem fazer nada, esperando um príncipe cair dos céus. Que bobagem! Legal mesmo era ser fada, ter asas, voar e fazer mágicas com uma varinha de condão. Na puberdade descobriu que o mundo todo era uma merda, a começar por seus pais, que não quiseram deixá-la fazer uma tatuagem nas costas. Desistiu de ser fada e percebeu que seria foda. E só então descobriu o que realmente era: uma bruxa.
Agora Frida passava os cinzentos dias de sua adolescência trancada no quarto, ouvindo Enya e The Doors, queimando – entre outras coisas – incenso e lendo tudo o que lhe caia nas mãos sobre feitiçaria ou qualquer outro tipo de crença ou ritual mágico pagão. De tanto imiscuir-se nesse gênero de estudo, decidiu, à época do vestibular, ingressar no curso de Antropologia da Universidade de Brasília. Não poderia ter feito melhor escolha. Aquele curso – o estudo do ser humano – contribuiria na lapidação de sua alma e traria à tona seus mais ocultos poderes.
Samantha, sua avó, indignou-se:
“Por que é que essa menina não pára com essa mania atávica e não vai estudar algo que presta? Como, por exemplo, nutrição ou pedagogia?”
“Ora, mamãe…”, contestava Tábatha. “Os tempos mudaram, deixa a menina fazer o que bem entender.”
“Humf! Se o James ainda estivesse vivo…”, resmungava a velha.
Coloridos foram os dias da juventude de Frida. Viajou muito. Geográfica e psiquicamente. Viveu com os índios Krahô. Aprendeu a fazer cerâmica e outros gêneros de artesanato. Aproveitando o grande espaço disponível, colocou vários brincos em cada orelha. Tornou-se uma expert em culinária natural e macrobiótica. Conhecia a Chapada dos Veadeiros, a dos Guimarães, a Diamantina e a costa brasileira tão bem quanto as ervas do quintal da sua casa. E o principal: aprendeu a conectar-se com as energias do cosmos e, assim, descobriu que não existem coincidências e acasos. Tudo na vida é significativo.
“Acho melhor você não pegar esse avião.”
“Ué, Frida, por que não?”
“Eu acabo de ver uma borboleta azul…”
“E daí?”
“Vai por mim”, concluía Frida com olhar penetrante, “pega outro avião.”
Ninguém contrariava Frida. Não na sua frente, claro, nem todos são néscios. E sim, ela parecia ter acesso aos arcanos e segredos do universo. Parecia…
Mas foi no primeiro domingo de dezembro do ano de 1994, que, na feira de trocas de Olhos d’Água, Frida teve uma revelação. Enquanto caminhava por entre os variegados objetos expostos na feira, seus olhos se encontraram com os olhos de um coelhinho cinza-azulado. Alguém lhe dissera, certa feita, que dificilmente um coelho encara uma pessoa. Aquilo lhe pareceu tanto mais significativo se se tomasse em conta o que tinha em mente naquele exato instante: o mistério do relacionamento homem-mulher. Havia já algum tempo que Frida tencionava conhecer o homem com quem experimentaria todos os arcanos do amor e do sexo, atingindo, assim, uma epifania orgástica. E nalgumas culturas – ela sabia – o coelho era símbolo de fertilidade. Era óbvio: aquele bichinho a levaria de encontro ao futuro companheiro. Trocou, pois, sua bolsa otavaleña de lã de alpaca, duas maricas – uma de osso, outra de durepox – e um chaveiro do Pato Donald pelo animal, com o qual, aliás, afeiçoou-se rapidamente. Batizou-o de Paulo.
No dia seguinte, ao final da tarde, Frida estava sentada à beira da estrada com Paulo, o coelho, tentando conseguir uma carona até Brasília. Um Opala negro, ano 1978, explendidamente tunado, se aproximava com extrema velocidade – negando aparentemente qualquer possibilidade de carona – quando, de súbito, o coelho pulou para o meio da pista. A moça gritou, colocando as mãos na cabeça. Era o fim. O carro, no entanto, freiou a poucos centímetros da cabeça do leporídeo, o qual, como se nada houvesse ocorrido, olhava tranqüilamente para Frida. Antes que ela abandonasse seu estupor, um rapaz de seus vinte e tantos anos, alto, pálido, cabelos desgrenhados, vestido de preto dos pés à cabeça, saltou do carro, apanhou o animalzinho e dirigiu-se calmamente até a garota.
“Não fica preocupada”, disse o rapaz, colocando o bicho no colo da moça. “Ele tá legal.”
Frida, que já abandonava aquela terrível paralisia, paralisou-se novamente. De paixão, porém.
“Eu… eu… quer dizer…”
“Você quer uma carona?”
“Cla-claro, quero sim”
Aleister Crowley de Souza era extremamente taciturno. Não dizia senão o necessário.
“Você não vai levar seu coelho, Frida?”
“Hã?! Claro… claro… que cabeça…”
Enquanto Aleister mantinha os profundos olhos negros fixos na estrada, Frida observava-o timidamente, a princípio, depois diretamente. Ela já o conhecia, vira-o na universidade, onde, certamente, também deveria estudar. Notou que ele trazia tatuados, nas costas da mão direita, um número – 999 – e, ao lado, uma serpente enrodilhada de cabeça para baixo. Muito esquisito.
“Bacana sua tatuagem…”
Ele permanecia calado. Nem um sorriso sequer. Era estranho, mas aquilo deixava a garota ainda mais excitada e curiosa. Uma hora depois, contudo, ela desistiu de entabular qualquer gênero de conversa. Sua excitação represada foi aos poucos se transformando em irritação. E, para piorar, Paulo, o coelho – por uma razão qualquer – não parava de se mexer no seu colo.
“Paulo, se você não ficar quieto, vou te jogar pela janela!”
Aleister olhou-a surpreso:
“Seu coelho se chama Paulo?”
“É, por quê? Alguma coisa errada nisso?”
Aleister desatou a rir sofregamente. A tensão de Frida, até então reprimida, também escapuliu na forma de risos um tanto nervosos, é verdade, mas, enfim, risos. E qual seria o motivo de tanta graça? Aleister meteu a mão por baixo do banco que ocupava e retirou dali um livro que entregou à passageira. Era um livro com narrativas medievais de perseguições às bruxas, sendo que uma delas discorria sobre um certo coelho chamado Paulo, o qual, na verdade, seria um feiticeiro espanhol condenado a viver sob tal forma animalesca por ter infringido as leis da magia. Ele havia divulgado conhecimentos secretos.
“Deve ser ele”, disse Aleister, apontando o animalzinho.
Frida quis lhe dizer que fora ela quem dera aquele nome ao coelho, mas calou-se. Melhor seria esticar a conversa e tentar conhecer intimamente aquele sujeito. Afinal, descobrira aquele elo fortíssimo que os unia: a magia.
“E ele poderia voltar à forma humana?”, perguntou ela.
“Sim”, respondeu Aleister. “Mas para isso ele precisaria realizar o desejo de uma pessoa…”
“Como assim?”, fez Frida, surpresa.
“Não tenho a menor idéia”, disse ele, e sorriu.
Ficaram em silêncio por alguns momentos.
Ela: “Que curso você faz lá na UnB?”
“Não sou aluno, sou professor de Antropologia da Religião.”
Frida não pôde esconder seu espanto:
“Mas você parece tão novo!”
Ele esboçou novo sorriso:
“Tenho vinte e nove anos. No ano passado, na Espanha, defendi minha tese de doutorado. Foi um estudo que fiz a respeito dos grimoires – livros de feitiçaria e de magia branca ou negra.”
Os olhos de Frida brilharam. Voltou a sentir-se uma princesinha diante daquele príncipe. Afinal, à bruxa, um príncipe o bruxo lhe parece.
“Aleister…?”
“Hum.”
“Eu estou perto de me formar. Será que você…”, e calou-se.
“O que é? Pode dizer.”
“Olha”, começou ela, acanhada. “Eu já tenho uma idéia pra fazer minha monografia…”
“E…?”
Frida estava tensa:
“Será que você não quer ser meu orientador?”
“Claro, Frida. Será um prazer.”
A moça ficou subitamente molhada. E também Paulo, o coelho. A janela do carro estava aberta e uma repentina rajada de chuva entrou por ali.
A monografia de Frida trataria da analogia existente entre o poder de um líder de igreja, ou seita religiosa, e o de um mago de tempos passados, o qual, abusando da boa vontade alheia, fazia intenso proselitismo entre as várias camadas da sociedade. Não que não houvesse pessoas que realmente se beneficiassem com os dogmas impostos. Segundo Frida, neste caso, o único fato relevante era se havia fé sincera por parte de cada seguidor. Obviamente, algo difícil de se averiguar. Sim, mas o ponto central do estudo era: todo líder de movimento religioso aspira, na verdade, à riqueza e principalmente ao poder, ainda que ele próprio não tenha – ou se recuse a ter – consciência disso. Devido a tais fatos, escolheu como epígrafe para o trabalho um trecho do Fausto de Goethe, uma frase de Mefistófeles, o diabo: “Sou parte daquela força que eternamente quer o mal, mas que eternamente obra o bem.”
Por orientação de Aleister, a estudante começou a freqüentar os cultos do Templo Mundial do Reino Dividido Ltda. A princípio, Frida sentia-se qual agente secreta. Entrava discretamente, sentava-se a um canto, no fundo, e ficava a ouvir o pastor. Com o tempo, começou a reconhecer as pessoas; alguns até a cumprimentavam com um movimento de cabeça. Ali eram todos muito atenciosos, principalmente o pastor. Um dia, em sua casa, durante o almoço, ela chegou a citar por duas vezes algumas frases proferidas por este último numa de suas litanias. Tábatha preocupou-se:
“Minha filha, será que você não está levando muito a sério esse seu trabalho?”
“Deixa ela”, replicou Samantha, com dissimulada satisfação. “Ela está aprendendo coisas importantes.”
Sem responder, Frida apenas sorriu e, levantando-se, foi preparar a comida do coelho. Afinal, o que diria? Que apesar do aparente fanatismo das pessoas que conhecera, finalmente encontrara um discurso sobre o amor baseado em valores sólidos e próprios da sua cultura? Diria à sua mãe que estava cansada de não entender o Baghavad Gïta e os hexagramas do I Ching? Que a possibilidade de reencarnar-se neste planeta mais mil vezes era uma idéia terrível e angustiante? Que o Zen budismo não parecia senão a melhor maneira de navegar para lugar algum? Não, era melhor calar-se. Ela queria apenas acomodar o peso da existência em ombros infinitamente mais largos. Talvez fosse este o ato mais sobrenatural que um bruxa pudesse tentar.
Aleister, por seu turno, não se perturbava ao ouvi-la perifrasear longamente sobre os cultos e a doutrina do Templo Mundial do Reino Dividido Ltda. Era o que esperava dela. Mas não pôde esconder uma ruga na testa quando ouviu-a dizer que estava contribuindo com o dízimo.
“Você o quê?”
“Bem…”, começou Frida, tergiversando. “Faz parte do trabalho.”
Naquele mesmo dia, Aleister teve um insight. Sempre quisera escrever um romance e agora tinha a idéia fresquinha na cabeça. Não foi deitar-se enquanto não a passou para o papel. Escreveria sobre um rapaz que, num sonho, vê a cidade e a casa do homem que desaparecera sem lhe pagar uma grande soma em dinheiro. Assim, o rapaz atravessa um grande deserto e, ao chegar na tal casa estrangeira, descobre ser ali um covil de ladrões, sendo, em seguida, preso pela polícia juntamente com os demais suspeitos. Interpelado pelo delegado, conta-lhe o sonho. O delegado, sorrindo com escárnio, diz-lhe que teve sonho parecido, que numa cidade do outro lado do deserto havia uma casa e que, no jardim dessa casa, havia um vaso sob o qual ocultava-se um cheque com a quantia que lhe deviam. A diferença – enfatiza o delegado – é que ele não fora tolo a ponto de empreender semelhante jornada e, após recomendar juízo ao rapaz, deixa-o partir. Consciente de que o delegado lhe havia descrito a própria casa, o rapaz, ao retornar, procura e encontra o cheque sob o tal vaso. Tudo isto depois de muitos sofrimentos e aprendizados. É claro que Aleister sabia que estava usurpando a idéia de um dos volumes de As Mil e Uma Noites. Mas isto era irrelevante. O que importava no seu livro seria a demonstração de que, atualmente, Deus é dinheiro. Toda a peregrinação do rapaz fora uma busca espiritual cujo desenlace é um encontro traduzido na forma financeira. Não que ele quisesse afirmar que a mera posse do dinheiro é uma epifania, uma premiação com a graça de Deus. Mas que a busca de dinheiro, hoje, confunde-se com a busca de Deus e só se encontra satisfação num quando também se encontra o outro. Seu livro se chamaria: O Homem que Foi Pago. Ou melhor: Diário do Homem que Foi Pago. Ou ainda: O Diário de um Pago. Tendo anotado essas coisas, Aleister foi dormir.
Na manhã seguinte, Frida foi encontrar-se com Aleister, acompanhada por Paulo, o coelho. Levava-o no colo. Queria, com isso, de uma vez por todas, verificar se Aleister a amava ou não. Em todas as reuniões ela se insinuou e ele não teve nenhuma atitude, seja positiva ou negativa. Ele era tímido? Ou simplesmente não a amava? Agora teria uma resposta. Não era para isto que adquirira o bicho? Aleister recebeu-a com efusão:
“Frida, sabe no que pensei a noite toda graças a você?”
A moça sentiu o coração apertado:
“Não”, disse com ternura.
“Deus é dinheiro!!!”, gritou ele.
Frida arregalou os olhos estupefata:
“O quê?! Você pirou, é? E graças a mim você teve essa grande idéia? Ai, meu Deus…”, e refestelou-se numa cadeira, choramingando sobre o imaculado pêlo de Paulo, o coelho.
“Calma, Frida, eu vou te explicar”, disse Aleister, aproximando-se solícito.
“Sai de perto de mim, sua Grande Besta! Você é o Homem mais Malévolo do Mundo!”, berrou ela, certa de que aquele homem não era realmente um príncipe mas, sim, um dragão.
Ele sentou-se numa cadeira e começou a contar tudo o que pensara na noite anterior. Explicou como a busca de dinheiro se confunde com a busca da graça divina. Que Deus é eterno e, portanto, a própria eternidade, e que eternidade é poder dispor de todo o tempo e que, enfim, tempo é dinheiro.
“Nas notas de um dólar não está escrito: In God We Trust? Isso quer dizer que o dinheiro se fia em si mesmo, afinal, ele não é Deus?”
Aleister continuou dizendo que as verdadeiras universidades religiosas são pagas, porque só aceitam quem tem Deus consigo.
“O bem público e gratuito é uma heresia. Apenas semeiam a preguiça, a indolência e o ócio. E todos sabem que este é a oficina do diabo!”
Frida estava comovida:
“E o que eu disse pra você pensar em tudo isso?”
“Quando você me contou que pagava o dízimo.”
“Como assim? O dízimo é pra ajudar os pastores a construir mais templos, e a levar a palavra de Deus a todos os lugares.”
“Sim, e pra estimular os fiéis com o exemplo que dão de serem homens bem sucedidos, graças unicamente à fé de cada um deles.”
Os olhos de ambos marejaram. Estavam emocionados, compartilhavam um momento de revelação. Sem se preocupar com Paulo, o coelho, Frida levantou-se, segurando-o com uma mão, e, com a outra, cingiu o pescoço do professor, que também se levantou.
“Eu te amo”, disse Frida e, antes que Aleister tivesse qualquer reação, beijou-o.
De repente uma espessa fumaça preencheu a sala e alguém surgiu entre o casal, pisando nos pés de ambos.
“Perdón…”, disse o intruso.
Aleister e Frida, assustados, pularam cada qual para um lado. Quando a fumaça se dissipou, puderam ver o rosto do visitante. A moça nem sequer notara o sumiço do seu coelho.
“Mi nombre es Pablo”, continuou o homem, “Pablo Conejo.”
Os dois olharam-se com assombro:
“É ele!”, disseram em coro. “O feiticeiro!”
“Mago, por favor, mago…”, corrigiu Pablo, que trajava uma roupa de lugar e época remotos. Tinha um cavanhaque grisalho, estatura média, os olhos de quem nascera dez mil anos atrás e o ar de quem esconde muitos segredos.
Durante alguns segundos, ninguém soube o que dizer. Aleister limitou-se a fazer um gesto para que todos se sentassem. Mas foi Pablo quem rompeu o silêncio:
“Creo que les debo una explicación para lo que acaban de presenciar…”, começou ele; e, então, contou tudo o que lhe passara 682 anos antes. Disse que, em 1312 d.C., ele não passava dum reles tempestarii, um andarilho que – ao passar pelos povoados da Espanha medieval – extorquia ouro e prata, ameaçando as populações locais de provocar terríveis tempestades se não o pagassem. Frida, que não compreendia aquele espanhol enrolado e ceceoso, não estava entendendo nada do que Pablo dizia. Já Aleister, de olhos arregalados, não apenas compreendia como também fazia anotações num bloco de papel. Aquilo tudo era extraordinário.
“Pero, en aquel año, todo cambió…”, prosseguia o mago. E relatou como conhecera um famoso alquimista da época, um certo Arnaldo de Villanueva, o qual, fugindo da Inquisição e particularmente do Arcebispo de Tarragona – que havia queimado seus livros em praça pública – refugiou-se com ele em Ponferrada. Pablo residia em tal cidade havia já alguns anos, pois ali podia facilmente contatar outros magos, os quais – disfarçados de peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela – eventualmente se reuniam para trocar conhecimentos ocultos e realizar sabás. Nos quatro meses que se seguiram, Pablo e Villanueva tornaram-se grandes amigos. Quando se separaram, Pablo estava mudado: aprofundara-se no estudo esotérico e já não tinha com a magia aquela postura leviana de que tanto abusara anteriormente, ao ameaçar os incautos com seu maleficium. Além do mais, aprendera a transmutação dos metais e dispunha de todo o ouro que quisesse. Tal afirmação fez Aleister pular da cadeira.
“O que foi que ele disse?”, perguntou Frida, curiosa.
“Nada de importante, não se preocupe…”
Pablo Conejo encerrou sua narrativa repetindo a história que Aleister já conhecia: em 1340 – após escrever um livro no qual não apenas revelava segredos alquímicos, mas também fórmulas rituais da seita secreta a que pertencia – foi transformado num coelho. Foi a maneira usada pelo Grão-Mestre daquela seita – a Orden de la Estrella Zancuda que Alumbra Nuestras Nalgas – para vingar-se dele. E assim viveu até aquele momento, de mão em mão, fugindo dos famintos e dos caçadores, até encontrar um desejo que pudesse ajudar a realizar. Foi o preço que pagou por haver desejado a fama às custas de segredos milenares.
“Sim”, disse Aleister, pensativo, “um desejo foi realizado…”
Ouvindo isso, Frida levantou-se sorrindo e aproximou-se do ser amado, afagando-lhe os cabelos. Sim, seu desejo de ser correspondida fora satisfeito. Aleister, no entanto, tornou a levantar-se abruptamente, puxou Pablo pela mão e dirigiu-se até a porta. A moça não entendeu bulufas:
“Onde vocês vão?!”, indagou.
“Quando eu voltar, te conto algo que não pude dizer por causa do Pablo.”
“Mas…”
“Tá tudo bem, ele vai me ajudar muito”, continuou Aleister. “Mas primeiro vou arranjar umas roupas novas pra ele”, e saíram.
Frida procurou pelo professor durante todo o dia e toda a noite, não o encontrando nem mesmo em casa. As mensagens que deixou na caixa-postal do celular dele foram ostensivamente ignoradas. No dia seguinte, pela manhã, ele tampouco apareceu para a reunião que haviam marcado. O que teria acontecido? Pablo teria feito algo com Aleister? Era melhor nem pensar ou seu coração não agüentaria. Provavelmente Aleister o teria levado para conhecer nossa época, agindo como uma espécie de cicerone do futuro. Não estavam na cidade mais moderna do mundo? Grande bosta o futuro então, pensava Frida. O jeito era continuar seu trabalho. No dia seguinte, com certeza, ele apareceria.
A moça dirigiu-se, pois, até o Conic, onde localizava-se o Templo Mundial do Reino Dividido Ltda. que costumava freqüentar. Era engraçado imaginar que aquele espaço fora, um dia, o Teatro Dulcina, e que, ali, representara-se anteriormente outro gênero de espetáculo, aquele no qual os atores, ao final, tiram as máscaras. Hoje, todos aqueles personagens que ali se encontram não tiram a persona nem sequer para tomar banho. Houve época em que pelo menos os pastores, após os cultos, abandonavam suas caracterizações. Mas atualmente, com tantas câmeras escondidas – profissionais ou amadoras – era melhor não arriscar. Ninguém se esquecia daquele pastor da alta cúpula do Templo que fora filmado num prostíbulo, em plena ação pecaminosa. Se ele tivesse sido mais carinhoso com a moça, teria descoberto a câmera que ela tinha no umbigo.
“Não vai ter culto hoje?”, perguntou Frida a um Guerreiro de Cristo, que, aliás, guardava a entrada do templo e tinha nas mãos um cassetete em forma de cruz.
“Foram todos à inauguração do novo templo na 106-Sul”, disse ele.
“106-Sul?!”
“Isso, onde era o antigo Cine Brasília. O Bispo Antônio Rada de Jesus estará lá.”
A estudante ficou pasma. Adeus festivais de cinema, pensou. Pelo menos teria a chance de assistir a um culto do líder daquela igreja. O Bispo era famoso por sua pregação sedutora e por seu ardor místico. Talvez pudesse finalmente completar a coleta de dados para escrever a monografia. Aleister ficaria satisfeito.
No novo templo da 106-Sul, muita gente já se acomodava pelas escadas e corredores, pois os assentos estavam todos ocupados. Frida aproximou-se o mais que pôde do palco-altar. Sentou-se no chão. Em pouco menos de dez minutos, o Bispo Rada de Jesus surgiu diante de seus fiéis. Tinha um ar severo e paternal. Estava cercado por alguns de seus asseclas.
“Meus filhos!”, começou ele. “Estamos aqui reunidos para juntos darmos nossa benção a nosso novo templo. Sim!”, gritou. “Estamos todos rejubilados por esse momento de comunhão e de vitória. Nosso desejo foi realizado, não foi? Na verdade, um outro desejo que eu trazia no coração foi mitigado, o desejo de encontrar um bom homem para tornar-se pastor deste templo…”
Deu uma pausa para causar suspense e apreciar o impacto de suas palavras. No templo observava-se um silêncio absoluto.
“Meus filhos!”, tornou a bradar o Bispo Rada de Jesus. “Quero lhes apresentar o homem a quem darei – assim como Cristo deu a Pedro a chave do Seu Reino – as chaves do maior templo do Distrito Federal. Aqui está o Pastor Aleister Crowley!”
Por pouco Frida não desmaia. Ficou besta ao ver o seu orientador, acompanhado por Pablo Conejo, subir ao palco-altar. Aquilo era demais para sua cabeça. Há tempos não recebia um golpe tão certeiro quanto aquele que o Bispo Rada lhe dera. Então era aquele o desejo realizado. A moça nem sequer conseguiu ouvir o que Aleister dizia aos fiéis. Limitava-se a encará-lo absorta. Então Deus é dinheiro…, pensava consigo. Que absurdo! Antes que o culto chegasse a término, porém, deixou o templo. Lá fora, ainda presa de intensa letargia, admirou uma última vez o ex-cinema que tanto freqüentara. Foi ali que assistira a uma reapresentação do filme Entre Deus e o Pecado, com o magnífico Burt Lancaster.
A estudante saiu caminhando lentamente. Atravessou o eixinho W e dirigiu-se para o Eixão, onde tomaria um ônibus para casa. Eram dezoito horas e o trânsito, como de costume, intenso. Mas Frida quase não via os carros. Ao chegar na passagem de pedestres, no centro do Eixão, viu apenas uma bonita borboleta azul. Deve estar indo pra casa dela, pensou, sem parar de caminhar. Assim que começou a atravessar a outra metade do Eixão, foi arrebatada por um carro. A estudante não viu mais nada.
Quando Aleister se inteirou daquele terrível acidente, chorou uma semana seguida. Não sabia, até aquela data, que estava apaixonado pela estudante. Frida sempre se insinuou muito, mas aquilo apenas o irritara. Não gostava desse tipo de mulher. E ainda havia aquelas coisas enormes nas laterais da cabeça dela que não o agradavam.
“Todavía puedes conocer otras mujeres…”, disse-lhe Pablo; e o ex-professor entendeu que ele se referia ao sentido bíblico da palavra conhecer. Neste caso, o mago espanhol não estava totalmente desprovido de razão. Mas, após aquele incidente, ele jamais se uniria em matrimônio com outra mulher. Isso não. Seu espírito ainda pertencia à pobre Frida. Agora, seu corpo… bem, já era outra história.
Assim, além de dedicar-se aos cultos do Templo Mundial do Reino Dividido Ltda., o pastor Aleister também passou a gastar seu tempo na conversão de marias-madalenas:
“Ai, pastor, seus óculos escuros tão machucando minhas coxas…”, exclamou um dia certa pecadora. “Será que o senhor não podia tirá eles não?”
Aleister ficou desconfiado. Mas após examinar o umbigo da mulher, viu que seus temores eram infundados. A imprensa não tinha como encontrá-lo ali. Tirou, pois, os óculos e continuou a pregação oral:
“Hmm… hmm… slupt…”
Qual não foi a surpresa do pastor Aleister ao ver suas imagens, num close extremamente sórdido e vulgar, durante um respeitado programa jornalístico. Quase não acreditava na ousadia dos jornalistas por esconder uma câmera em semelhante local, um verdadeiro desrespeito com o corpo da mulher. E aquelas cenas, em pleno horário nobre, derrubaram o pastor. Era extremamente chocante a visão, em determinado momento, daquele 666, tatuado nas costas da sua mão, indo e voltando. O Bispo Rada de Jesus expulsou-o e admitiu, em público, o erro de haver recrutado, como sequaz, um acadêmico hipócrita, desvirtuoso e herege.
“O intelecto é um diabo que devemos manter sob correntes!”, bradou num de seus cultos.
Aleister sentia-se literalmente no inferno. Sua vida fora jogada na lama, apedrejada e escarrada. Não apenas pela imprensa mas ainda por seus amigos, ex-colegas de docência e parentes. Apenas Pablo permanecia ao seu lado – o que, aliás, muito o atormentava. Afinal ele fora um dos pivôs de sua entrada no Templo. Se não fosse o fato de o mago ser capaz de transformar qualquer metal em ouro, jamais teria aceito a proposta do Bispo. Tornar-se sócio daquela empreitada religiosa não lhe parecia, a princípio, muito seguro. Mas era muito mais certo do que a possibilidade de manter Pablo, com sua capacidade de produzir ouro, a seu lado. E, afinal, Deus era dinheiro, não era? Agora, o que mais minava seu espírito era sua incapacidade de desculpar-se ou mesmo de falar com Frida. Suas almas estavam muito distantes. Foi, então, num domingo à tarde, que o ex-pastor, enlouquecido pela quantidade de remordimentos, se atirou do alto da Torre de TV.
Frida, ainda no leito do Hospital Sarah Kubitschek, recebeu a notícia da morte de Aleister com os olhos úmidos. Apesar de tudo, ainda o amava. Não entendia por que ele só a visitara quando ainda estava desacordada. Será que ele sentiu alguma repulsa quando descobriu que ela estava paraplégica? Será que ele realmente não a amava? Na verdade, a moça só conseguiu compreender toda aquela série de acontecimentos, quando Tábatha, sua mãe, algumas semanas depois, lhe trouxe um livro.
“Meu Deus!”, repetia enquanto folheava a brochura.
O livro fora escrito por Pablo Conejo e, de forma romanceada, tratava da relação dela com Aleister e de todos os terríveis fatos ocorridos. Para Frida, aquilo era uma canalhice da parte do espanhol. Além de expor sua vida particular, ele ainda dera um título demasiado cafona àquela obra: Na Margem do Lago Paranoá Eu Sentei e Chorei. Mau gosto maior, impossível…
Frida, Tábatha e Samantha, após intensos debates, chegaram a uma conclusão. Deveriam dar um jeito naquele bruxo fossilizado. E só então a estudante ouviu a revelação que a mãe e a avó tinham para lhe fazer, havia já muitos anos: as três eram feiticeiras! Aquilo foi outro grande susto na sua vida. Ela era de fato o que no íntimo sempre quis ser. Por que nunca lhe disseram antes?
“Seu avô nos condicionou a agirmos como pessoas normais, não podíamos contrariá-lo”, disse Tábatha.
A avó concordou com um movimento de cabeça:
“E eu, num determinado momento, vi que ele tinha razão. A vida não tem graça se pudermos resolver tudo com passes de mágica.”
“Mas certas coisas podem ser melhor arranjadas se usarmos um pouco de magia”, contestou Frida, indignada.
“É por isso que não vamos deixar aquele médico esquisito operá-la”, disse Samantha. “Nós podemos fazer bem melhor…”
“Num piscar de olhos você estará andando”, acrescentou Tábatha. “Vamos apenas esperar um pouco pra que ele não fique pensando que ocorreu algum tipo de milagre.”
Depois Frida ouviu de ambas a explicação do porquê apenas ela deveria fazer algo contra o mago. Como ela fora a única afetada diretamente, apenas ela poderia aplicar o castigo. E deveria fazê-lo com sabedoria, senão – da mesma maneira que poderia ocorrer às outras duas caso tomassem suas dores – o sortilégio também recairia sobre ela.
Naquele dia, Frida foi dormir tranqüila. Não precisava mais se preocupar com sua saúde, nem com suas crenças, nem com sua verdadeira natureza – era mesmo uma bruxa! – ou mesmo com o destino de Pablo Conejo. Ele, evidentemente, não perdia por esperar. Desta vez seria transformado numa galinha ou, quem sabe, num Cachorro-Urubu. O tal mago, aliás, também estava bastante satisfeito com sua nova carreira de escritor. Muito embora todo o trabalho de escrever lhe exigisse apenas um estalar de dedos. Inclusive já planejava seu novo livro: As Warquírias. O livro contaria a história de dois caipiras que vão à capital e se tornam duas Drag-Queens que, imagine, adoram se vestir de anjos. Uma beleza de livro. Agora, nada tranqüilas estavam Samantha e Tábatha… Afinal, como diriam à menina que – após as plásticas que ambas sofreram (idéia do James, claro) – já não podiam mover respectivamente a boca e o nariz para efetuar as mágicas? Claro, Frida podia realizar os passes de mágica por si mesma, isto é verdade. Contudo, restava uma questão: no que se referia ao ponto do corpo usado para desencadear a magia, a menina possuía os genes do tataravô ou da tataravó? Sim, pois, se houvesse puxado esta última, deveria mover o dedão do pé esquerdo, o que era impossível. Mas se carregasse os genes do tataravô bastava abanar as orelhas, coisa que ela tinha de sobra. Que o diga o senso estético de Aleister Crowley de Souza…
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Nota: Antes que você, leitor(a), caia na obtusidade de me colocar como antagonista de certo autor já consagrado, pense no seguinte: este livro faz parte da minha lenda pessoal…
(Extraído do livro A Tragicomédia Acadêmica – Contos Imediatos do Terceiro Grau.)
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