Numa revista ingleza, o critico Ernst Borneman publicou há pouco um artigo de confronto do romance inglez com o dos Estados Unidos, que me parece interessar tambem aos estudiosos dessa outra expressão nova de americanismo que é o romance brasileiro em relação com o europeu.
Numa revista ingleza, o critico Ernst Borneman publicou há pouco um artigo de confronto do romance inglez com o dos Estados Unidos, que me parece interessar tambem aos estudiosos dessa outra expressão nova de americanismo que é o romance brasileiro em relação com o europeu.
Qual a grande differença entre aquelles dois romances – o inglez e o dos Estados Unidos? Para Ernst Borneman é principalmente esta: a lingua. O inglez dos romancistas norte-americanos é um; o dos inglezes, outro. Por mais paradoxal que pareça, o inglez dos primeiros se apresenta como o mais inglez no sentido de ser o mais elisabetheano. E o inglez elisabetheano é talvez o mais inglez dos inglezes do ponto de vista da vitalidade, da espontaneidade, da oralidade.
O inglez da Inglaterra vem se distanciando do elisabetheano para adquirir qualidades francezas de formalismo intellectual que repugnam aos romancistas modernos dos Estados Unidos, como haveriam de repugnar aos escriptores inglezes do tempo de Elisabeth. Com effeito, os estudos philologticos confirmam estatisticamente a tendencia para a substituição, no inglez da Inglaterra, das palavras anglo-saxonicas por palavras neo-latinas, a que se refere Borneman. Substituição que corresponde ao desenvolvimento do intellectualismo com prejizo do instinctivismo. Este deu ás obras elisabetheanas alguma coisa de crú, de verde, de inacabado, mas tambem uma vitalidade que vem diminuindo na literatura ingleza á medida que o processo de latinização da lingua vem passndo das obras erudita para o ensaio literario, para a poesia, para o romance.
O inglez da Inglaterra vem perdendo seu poder poetico, mas ganhando qualidades de precisão, de nitidez, de clareza: justamente as qualidades que tornam a lingua franceza rebelde aos escriptores verdadeiramente criadores, embora particularmente docil aos academicos e ideal para os didacticos. Se a lingua ingleza resiste ao processo de lainização, de intellectuação e de academização que a approxima hoje da franceza, é que não é uma lingua simplesmente européa, mas o idioma de uma federação de nações jovens: portanto, em estado plastico e de crescimento e recebendo novas energias dessa multidão de novos adolescentes. Ao contraio da francesa, que continua essencialmente européa e adulta nos seus caracteristicos literarios, embora seja para alguns povos de outros continentes o latim por meio do qual suas élites de letrados ou simplesmente de mundanos se communicam uma com as outras e todos com o intellectualismo ou o semi-intellectualismo europeu.
Precisamente dos Estados Unidos – não só do seu romance, como pretende Ernst Borneman, mas da poesia e do ensaio – é que a lingua ingleza recebe hoje a energia um tanto rustica que a tornou um milagre de vida na era elisabetheana, antes das palavras neo-latinas criarem entre quem escreve e quem lê a “distancias” a que se refere aquelle arguto critico. Pelo que, romancista norte-americanos como Hermingway, GalleWilhelm e Hammett se affirmam melhores continuadores da tradição elisabetheana do que os inglezes afrancezados da marca de Priestly ou Mackenzie.
E’ claro que a Inglaterra post-elisabetheana tinha de europeizar-se e sua lingua de reflectir essa europeização. Borneman estaria hoje desejando o impossivel se o seu gosto pela tradição elisabetheana fosse ao extremo de pretender uma Inglaterra sem outra tradição literaria, senão a daquelles dias um tanto rudes e quasi anti-europeus pelo erdor do seu lyrismo.
Mas não há duvida que o inglez da America, representado pelos seus escriptores mais corajosamente creadores, está avivando hoje, no idioma commum dos povos de formação ingleza, qualidades poeticas de expressão que tendo sido tomadas a principio, pelos grammaticos de vista curta, como anti-artistica e anti-literarias, vão sendo hoje reconhecidas como necessárias á saúde da lingua commum: ao avigoramento do seu lyrismo ao lado do intellectualismo crescente.
Fonte: FREYRE, Gilberto. Lingua e literatura. Revista do Brasil. Rio de Janeiro, v.2, n.13, p. 108-109, jul. 1939.
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