Lima Barreto contra o Futebol

Lima Barreto

Amigos, não tenho nada contra o futebol. Joguei muito quando moleque, embora, como esporte, preferisse o karatê ou montanhismo. Mas, graças a Deus, o dito cujo só se torna hegemônico a cada quatro anos. Ou ninguém agüentaria. Mas não deixa de ser cômico — quase patético —, ainda mais após o pentacampeonato, ler esse primeiro texto do Lima Barreto, que odiava, por si, o futebol. (O melhor trecho é a da expressão Risum teneatis.) Já no segundo, podemos pelo menos captar melhor seus motivos e admirar sua perspicácia ao prever tudo o que hoje desembocou na CPI do futebol.
[]’s Yuri Vieira

Careta, 8.4.1922.

TENDO recebido de Porto Alegre, por intermédio desta revista (Careta), uma terna missiva do Dr. Afonso de Aquino, meu saudoso amigo, em que ele me fala da “Carta Aberta” que o meu amigo também Dr. Carlos Sussekind de Mendonça me dirigiu, publicando-a sob a forma de ‘livro e com o título -O Esporte está deseducando a mocidade brasileira- lembrei-me de escrever estas linhas, como resposta ao veemente e ilustrado trabalho do Dr. Sussekind.

Confesso que, quando fundei a Liga Brasileira Contra o Futebol, não tinha, como ainda não tenho, qualquer erudição especial no assunto, o que não acontece com o Dr. Mendonça. Nunca fui dado a essas sabedorias infusas e confusas entre as quais ocupa lugar saliente a chamada Pedagogia; e, por isso, nada sabia sobre educação física, e suas teorias, nas quais os sábios e virtuosos cronistas esportivos teimam em encaixar o esporte. A respeito, eu só tentava ler Rousseau, o seu célebre Émile; e mesmo a vagabundíssima Educação de Spencer nunca li.

O que me moveu, a mim e ao falecido Dr. Mário Valverde, a fundar a Liga foi o espetáculo de brutalidade, de absorção de todas atividades que o futebol vinha trazendo à quase totalidade dos espíritos nesta cidade.

Os jornais não falavam em outra coisa. Páginas e colunas deles eram ocupadas com histórias de “matches”, de intrigas de sociedades, etc., etc. Nos bondes, nos cafés, nos trens não se discutia senão futebol. Nas famílias, em suas, conversas íntimas, só se tratava do jogo de pontapés. As moças eram conhecidas como sendo torcedoras de tal ou qual clube. Nas segundas-feiras, os jornais, no noticiário policial, traziam notícias de conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo; mas, nas seções especiais, afiavam a pena, procuravam epítetos e entoavam toscas odes aos vencedores dos desafios.

Não se tratava de outra coisa no Rio de Janeiro, e até a política do Conselho Municipal, desse nosso engraçado Conselho que teima em criar teatro nacional, como se ele fosse nacional, a fim de subvencionar regiamente graciosas atrizes – até isso era relegado para segundo plano, senão esquecido.

Comecei a observar e a tomar notas. Percebi logo existir um grande mal que a atividade mental de toda uma população de uma grande cidade fosse absorvida para assunto tão fútil e se absorvesse nele; percebi também que não concorria tal jogo para o desenvolvimento físico dos rapazes, porque verifiquei que, até numa sociedade, eram sempre os mesmos a jogar; escrevi também que eles cultivam preconceitos de toda a sorte; foi, então, que me insurgi. Falando nisso a Valverde, ele me disse todos os inconvenientes de tal divertimento, feito sem regra, nem medida, em todas as estações e por todo e qualquer sujeito, fosse de que constituição fosse, tivesse as lesões que tivesse. Fundamos a Liga.

Ela não foi avante, não somente pelos motivos que o Dr. Mendonça escreve no seu livro, mas também porque nos faltava dinheiro.

Quando a fundamos, eu fui alvejado com os mais soezes insultos e indelicadas referências. Ameaçaram-me com vigorosos polemistas, partidários de futebol e uma récua de nomes desconhecidos cujo talento só é conhecido na tal Liga Metropolitana. Coelho Neto citou Spencer e eu, pela A Notícia, mostrei que, ao contrário, Spencer era inimigo do futebol. Dai em diante, tenho voltado ao assunto com todo o vigor que posso, porque estou convencido, como o meu amigo Sussekind, que o “sport” é o “primado da ignorância e da imbecilidade”. E acrescento mais: da pretensão. É ler uma crônica esportiva para nos convencermos disso. Os seus autores falam do assunto como se tratassem de saúde pública ou de instrução. Esquecem totalmente da insignificância dele. Um dia destes o Chefe de Policia proibiu um encontro de “box”; o cronista esportivo censurou asperamente essa autoridade que procedera tão sabiamente apresentou como único argumento que, em todo o mundo, se permitia tão horripilante coisa. Ora, bolas!

Certa vez, o governo não deu não sei que favor aos jogadores de futebol e um pequenote de um clube qualquer saiu-se dos seus cuidados e veio pelos jornais dizer que o futebol tinha levado longe o nome do Brasil.”Risum teneatis”…

O meu caro Dr. Sussekind pode ficar certo de que se a minha Liga morreu, eu não morri ainda. Combaterei sempre o tal de futebol.

(Extraído de Marginália, Lima Barreto.)

Risum teneatis (Sofreareis o riso?). – Expressão de Horácio (Arte Poética, 5), que se aplica às coisas grotescas e ridículas.

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A Liga contra o football

Lima Barreto, entrevistado pelo Rio-Jornal expõe os inconvenientes do football.Um jogo de pés que concorre para a animosidade e a malquerença entre os filhos de uma mesma nação.

A notícia de que Lima Barreto e alguns companheiros tratavam de fundar uma ‘Liga contra o Football’, levou-nos esta manhã à sua casa, para obter mais esclarecimentos sobre os destinos e fins da liga. Lima Barreto reside, há dezesseis anos, na pacata estação suburbana de Todos os Santos. A sua casa é modesta, porém clara e ampla, cercada de fruteiras e respirando sossego. A sua sala de trabalho, ao mesmo tempo dormitório, é também clara e ampla, tendo livros, móveis, quadros – tudo em ordem. A desorganização de Lima é para uso externo. Estava lendo os jornais matutinos, quando chegamos.

— Você por aqui! exclamou ele logo ao ver-nos.

— É verdade. Quero saber bem esse negócio da ‘liga’ que você fundou.

Nós já nos havíamos sentado e o Lima, na cadeira de balanço, deixou os jornais e respondeu:

— O negócio é simples. Há cerca de um ano eu e o Valverde… Você não conhece o Valverde?

— Conheço.

— Bem. Eu e ele, conversando sobre os sports, em uma confeitaria do Méier, Valverde me expôs, com a sua competência especial de médico que conhece o seu ofício, os prejuízos de toda a ordem que o abuso imoderado dos sports, sobretudo o football, trazia à nossa economia vital. Ele mós explicou singelamente, sem pedantismo, nem suficiência doutoral. Impressionei-me. Dias depois, ele me lembrou a fundação da liga. Passaram-se dias e meses e não mais falamos nisto; ultimamente, porém…

— Com a decisão da congregação do Pedro II, proibindo o football?

— Não; antes. Eu explico a você. Nos últimos meses do ano passado, estive no Hospital Central do Exército, tratando-me. Lá, sem ter que fazer, nem distrações, eu, por desfastio, lia todas as seções dos jornais, inclusive as esportivas que são as únicas enfatuadas e enfáticas. Verifiquei que havia uma irritação inconveniente entre os players.

— Você já sabe a técnica do football?

— Isso é técnica? Player está ali no Valdez.

— Vamos adiante.

—…entre os players, amadores, torcedores, enfim entre o público do bola-pé de lá e o daqui. Você sabe disso?

— Sei.

— Saindo do hospital, tive notícias mais completas. Entre a gente do football de lá e a daqui há uma rivalidade feroz que se manifesta em chufas, vaias, apelidos deprimentes, até em rolos. A esse respeito escrevi dois ou três artigos…

— Onde?

— No A.B.C. … Mas, a coisa não seria tão importante, se nestes últimos dias, realizando-se no Recife, um match entre um club de lá e um daqui, não se repetisse as chufas, as vaias e os rolos.

— Concluiu você, daí…

— Concluí que, longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separava-as:

— Não será exagerado, Barreto?

— Julgo que não. Entre São Paulo e Rio foi assim; entre Rio e Recife também; e o lógico é provar que as coisas se repetirão entre Rio e Belém, entre Rio e Porto Alegre, etc. etc.

— É um argumento.

— E não é só este. Os grandes oclubes daqui, aqueles que têm para cerimoniais o caucásico Coelho Neto, são portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça etc., você não pode negar isto!

— Não nego; é verdade.

— Está aí, uma grande desvantagem social do nosso football. Nos nossos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do pontapé propaga a sua separação e o governo o subvenciona.

— Subvenciona?

— Sim. Parece que a Liga e a tal Confederação estão inscritas no orçamento da despesa da República. Não estou certo, vou verificar; mas, favores e favorezinhos, elas têm recebido do governo para lançar cizânias entre Estados da União e criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros.

— Que favores são esses?

— Os poderes governamentais reconheceram de utilidade pública a tal Confederação, o que naturalmente redunda em alguma vantagem de ordem administrativa; e aquela casa de espantos, que é o Itamarati, quando há os tais matches internacionais, subvenciona clandestinamente as équipes que vão para as repúblicas vizinhas ‘defender as nossas cores’, como dizem eles infantilmente. De modo…

— Você é capaz de provar que receberam essas subvenções?

— Nem eu nem ninguém. O Itamarati, depois de Rio Branco, fez-se a caixa dos segredos e das mistificações da nossa administração. Não há quem arranque de lá a mais simples certidão…

— Então, como você?

— Como? Digo, sob a responsabilidade de meu nome, denuncio, e chamem-me a juízo. Espero. Contudo…

— Mas, Barreto, penso em que vocês não ficarão nesse aspecto político-social-administrativo do football – não é?

— Não ficaremos aí. Esta é a minha parte, mas a que se refere à higiene pessoal, ao funcionamento da boa saúde, às reações de ordem psicológica, às perturbações ao desenvolvimento mental que ele possa trazer, esta parte difícil, árdua e técnica é com o Valverde. Eu tratarei da minha, no que tenho o apoio de todos, pois nenhum de nós está disposto a admitir que o Brasil pague impostos, para o governo obter dinheiro e ele venha a dar um pouco desse dinheiro à sociedade dos que cavam a separação, não só das divisões políticas da nação, mas entre os próprios indivíduos desta nação. Você pode dizer que nós não estamos dispostos a consentir que se forme, à custa dos contribuintes, uma aristocracia que se baseia nas habilidades dos pés… Representaremos ao Congresso…

A conversa ameaçava eternizar-se, despedimo-nos, pois; o serviço do jornal nos esperava.

(Diário Íntimo, Lima Barreto.)

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