Tributo a Dan Eldon e – por que não? – a Kevin Carter


Diário de Dan Eldon

É sempre um bom remédio para o mau humor lembrar a última cena do filme “A vida de Brian” do grupo inglês Monty Phyton. (Para quem não viu, é a hilariante história de um azarado judeu – filho bastardo de um romano – nascido no mesmo dia e na tenda vizinha a de Jesus Cristo.) Na cena – vou contar o final sim! algum problema? – vemos um bom número de pessoas sendo crucificadas pelos mais diversos motivos. Entre elas está o coitado do Brian que, como tantos ao longo dos séculos, deixou-se engambelar por uma ideologia política que não dava a mínima para sua vida individual. Sim, pois pertencia a um grupo revolucionário cujo inimigo era o Império Romano, que, apesar dos diversos avanços civis, só podia mesmo ser o culpado por tudo de ruim que rolava. E o Brian lá, em desespero, a levar as últimas reprimendas da mãe, que não o poupa nem mesmo na cruz, e a ser ignorado pelos antigos companheiros, que hipocritamente o nomeiam martír oficial, ou seja, que o pegam pra cristo de sua causa. Mas eis que surge um figura, também já crucificado, que alega ser este um problema menor, uma vez que ele próprio já foi crucificado tantas vezes. A vida é assim mesmo, diz, as coisas nem sempre caminham segundo nossos desejos. Ser crucificado, como diz o outro, faz parte. E, com o acompanhamento de um verdadeiro coral de crucificados, sem falar do improvável sapateado, começa a cantar uma música: “allways look on the bright side of the life!” (sempre olhe o lado brilhante, luminoso da vida). Simplesmente de rachar o bico.

Mas o que eu na verdade queria é dizer o seguinte: por que será que o fotógrafo Kevin Carter se matou? Qual afinal era sua “visão de mundo”? Qual era, para ele, o “sentido da vida”? Sim, pois foi vendo as mesmas coisas, que ele viu, que Madre Teresa, Francisco de Assis e até mesmo Gandhi – que acabou mais político que homem religioso – fizeram o que fizeram. Ao invés de negar, abraçaram não apenas suas próprias vidas mas a de todos os outros. Pelo que pude entender – desesperado por não desencadear com suas fotos africanas uma ação internacional (de cunho político-econômico-militar, claro) -, Kevin Carter acreditou não haver mesmo esperança para este planeta. Se nem mesmo suas imagens sensibilizavam os governos, o que o faria? Eu, sinceramente, concluo daí que, se ele realmente se matou por esse motivo, suicidou-se por pura ingenuidade. O ser humano – ele inclusive – anda tão embotado que não percebe, como dizia Krishnamurti, que “a revolução fundamental é revolucionar-se”. E aqui, o termo revolução não tem nenhuma conotação política, ética ou social, mas espiritual. Caridade (caritas) não é simplesmente dar esmolas, distribuir coisas materiais aos necessitados. É, antes de tudo, dar atenção, o que – para Krishnamurti – é sinônimo de afeição, amor ao próximo. No sinal vermelho, por exemplo, as crianças estão já tão acostumadas a só receber, ou não, moedas e notas de um Real, nunca atenção, que a maioria delas – antes, nos primórdios de sua triste carreira, com os olhos tão brilhantes, tão, enfim, crianças – a maioria passa a nem sequer olhar na nossa cara. Claro, pois aprendem conosco que só precisam de dinheiro, de comida, e nada mais. Tantas discussões políticas nunca dão em nada simplesmente porque – com os partidos tão apegados, tão apaixonados por idéias e slogans – seus representantes nunca conseguem entender o que o outro diz, por simples falta de atenção (afeição). A “revolução fundamental”, o Amor, deve vir no começo, de dentro do indivíduo, e não no fim, quando, bando de otários!, só então percebermos que nossas idéias realmente batem, que realmente somos farinha do mesmo saco. Esperar por esta constatação – depois que Cristo e Maomé tão bem o ratificaram – é ridículo. Somos sim, desde sempre, farinha do mesmo saco!


Um dos diários de viagem de Dan Eldon

Lembro-me agora das discussões no curso de jornalismo – aliás, um curso horroroso – sobre se o jornalista deve ser um mero observador ou se deve participar ativamente dos fatos. Acho que foi este dilema que matou Kevin Carter. Aposto que, acreditando piamente que apenas o efeito de sua foto “salvaria” o garoto (ver abaixo), se absteve de todo impulso de prestar socorro pessoal. O remorso deve tê-lo atormentado como as Fúrias a Orestes. Aposto que, ao contrário do fotojornalista Dan Eldon (que Deus também o tenha), não sabia que atenção é afeição. Este último, com seu espírito de criança e artista, meteu-se repetidamente em guerras e guerrilhas, doando espontaneamente toda afeição de que era capaz. São muitas as fotos e vídeos onde o vemos brincando com as crianças, conversando com velhos, abraçado a soldados somalis ou, com uma arma emprestada especialmente para a encenação, imitando um cômico e patético cowboy em meio a uma rua deserta devastada por tiroteios. Seus diários são verdadeiras obras de arte, com desenhos, foto-montagens, interferências sobre fotos, colagens e apontamentos cheios de humor e de ternura pela triste gente que retratava. Ele sim era uma mistura de coragem (¿no hay que endurecer?) e afeição. Não era um revolucionário político em busca de retórica e sangue. Morreu na Somália, junto a outros jornalistas estrangeiros, linchado por uma multidão enfurecida, a qual queria se vingar do equívoco bombardeio, feito pelos americanos, contra uma casa onde só havia civis. Tinha 23 anos.

Se Kevin Carter fotografou, Dan Eldon simplesmente passarinho…

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[Kevin Carter (1961-1994), ganhador do prêmio mundial Pulitzer por esta fotografia, suicidou-se poucos meses após receber o prêmio: Todos esses que aí vão, atravancando meu caminho, eles urubu, eu cadaverzinho…]

O POEMA
Por Mário Quintana

Um poema como um gole d’água bebido
no escuro.
Como um pobre animal palpitando
ferido.
Como pequenina moeda de prata
perdida
pra sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua
misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
ferido de mortal beleza.
“Todos esses que aí vão
atravancando meu caminho
eles passarão, eu passarinho.”
(Do livro “Poesias”.)

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Foto de Sebastião Salgado P.S.: Acho que temos aqui um bom ponto para iniciar um estudo sobre o excelente fotógrafo Sebastião Salgado, o qual, apesar das belas imagens em contra-luz, parece acreditar numa salvação também em contra-luz, afinal, estudou economia e usa um jargão marxista ao tratar de seu – repito, valioso e belo – trabalho testemunhal. Oxalá não seja assim, oxalá ele já tenha percebido que o mais importante só é percebido aqui, dentro do peito, e que mil viagens ao redor da Terra nada nos dirá sobre Isto. Sei que ele aprendeu, desde a infância, a observar as coisas de sob as sombras das árvores, das trevas para a luz, mas espero que, não apenas exteriormente mas também interiormente, ele allways looks on the bright side of the life! Aliás, o próprio Karl Marx teria contribuído muito à sua amada “humanidade” se tivesse sido apenas um “fotógrafo literário”. As fortes imagens e metáforas de “O Capital”, ao invés de despertar a necessária compaixão das elites, são torcidas por sua ideologia a ponto de somente atiçar o ódio dos ditos “explorados”. Ainda bem que as fotos do Salgado falam mais que suas idéias…

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