O primeiro telefone celular a gente nunca esquece. O primeiro que usei na vida não era meu. Foi em 1995 e o celular pertencia ao cineasta Nélson Pereira dos Santos. Depois de fazê-lo confessar que realmente aprovara, numa seleção para seu curso na UnB, todas as mulheres que se candidataram, deixando tão somente as duas vagas restantes para os homens – entre os quais eu não estava incluído — ele resolveu atender às minhas solicitações e me aceitou, idéia dele, como seu assistente pessoal no tal curso Produção Cinematográfica — Do Roteiro ao Filme. Segundo ele, eu não fora aprovado porque meu roteiro tinha muitos planos, o que encareceria a produção!!!
(Foi a primeira vez que o econômico feriu com força minha sensibilidade estética. E hoje, devo dizer, quem manda é o Guel Arraes com seus milhões de planos…)
Mas pelo menos, neste caso, o último — eu! — foi realmente o primeiro. Enquanto os demais alunos, com poucas exceções, se limitaram a participar da rodagem de seus respectivos curtas-metragens, eu trabalhei nos doze, em diferentes funções, pseudo-coroado com meu pseudo-status de assistente pessoal. Sim, pseudo, porque as únicas vantagens que isso me trazia era operar o celular do Nélson, um enorme tijolão preto, e almoçar com ele. Foi num desses almoços que ele me contou que o Glauber Rocha iniciara a carreira carregando cabos para ele, Nélson. Também descreveu sua sorte ao encontrar uma cadela super talentosa para interpretar a Baleia de Vidas Secas. Falou sobre os imensos porres em Cannes, ele e Glauber chapados atrás das atrizes. Sobre a absurda dificuldade que é filmar no Brasil, e assim por diante.
Mas, voltando ao celular, eu tive vergonha de dizer ao dono que não sabia utilizá-lo. E, afinal, se um sessentão era capaz, eu, um escolado usuário de CP400 Color, também o era. E passava boa parte do tempo atrapalhado com o bicho. Cheguei a ligar dos orelhões da UnB porque o telefone do cara era carioca e não queria completar certas ligações. Mas atender as chamadas era fácil, como todos hoje sabem. Mas houve um telefonema que ele não me deixou atender. Sua namorada queria curtir o final de semana juntos. O que me faz lembrar a anedota sobre essa mesma namorada candanga, que o Lauro, o maquinista hell’s angels do set, me contou na ocasião. Eles estavam rodando A Terceira Margem do Rio no entorno de Brasília e, após uma semana extenuante, alguns membros da equipe foram pedir ao Nélson a Kombi da produção emprestada para o fim de semana. “Para quê?”, quis saber o Nélson. “Para ir ao Poço Azul“, explicaram, “uma cachoeira afastada, tranqüila e super bonita”. O Nélson negou, disse que era longe e que não podiam gastar gasolina. Claro que os figuras deram um jeito, fizeram uma vaquinha, alugaram dois carros e, no fim de semana, se mandaram pro Poço Azul. Lá chegando, não é que deram de cara com a kombi da produção? Estava sozinha, estacionada no início da trilha. Muito estranho. Fizeram a caminhada até o Poço e o que viram? O Nélson Pereira peladão, a água no joelho, abraçado à sua namorada candanga, também peladona. Essa história — juntamente com a outra, a do critério de seleção para o curso — me deixou com uma tremenda vontade, não satisfeita, de fazer uma ligação internacional com aquele celular. Mas o Nélson é um cara bacana e nos levou — a nós, seus alunos — para almoçar no Rosental, o ex-cozinheiro particular do Juscelino Kubitschek, que nos mostrou fotos ao lado até da Rainha Elizabeth II, e então deixei a ligação internacional pra lá.
Claro, seria injusto negar o quanto o cara é também um líder fantástico no set de filmagem: enérgico, porém tolerante, sabendo valorizar até o mais humilde membro da equipe. Coisa que nunca vi nas produtoras de São Paulo onde trabalhei. Neguinho roda um comercial de esmalte para unhas e se acha o Stanley Kubrick. Não vê ninguém que esteja abaixo do próprio nariz. Mas, puts, esse Nélson, vai pensar com a cabeça de baixo assim lá na terra da minha avó, afinal, ela também é Pereira dos Santos…
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