Os sonhos dos Xavantes

Meu amigo Ricardo Calaça é antropólogo e trabalhou por alguns anos na Funai, junto aos índios xavantes. Em conversa recente, ele me explicou como essa etnia tem sua visão de mundo — e conseqüente estrutura social — totalmente fundamentada nos sonhos. Nenhuma decisão importante, tomada pelos anciãos de uma tribo, deixa de levar em consideração as mensagens, conselhos e informações recebidas, por eles, durante o sono. Há inclusive todo uma preparação, toda uma disciplina e um ritual a serem seguidos para atingir o objetivo almejado. Para os A’wê Uptabi, o povo verdadeiro — é assim que os xavantes se autodenominam — a vida é feita da mesma matéria dos sonhos e, portanto, temos muito o que aprender com eles.

Mas como isso afinal funciona na prática? Por exemplo: a Funai vai até os xavantes e os convoca para uma reunião em Brasília, onde se discutirá a demarcação de uma reserva. Os anciãos, pois, se reunem em assembléia no warã — centro da aldeia onde acontecem todas as reuniões e cerimônias — e discorrem sobre todos os aspectos importantes da questão. À noite, retiram-se para dormir e, durante o sonho, conversam com os Sarewa (seus ancestrais já falecidos), com os wazuriwa (vigilantes, mensageiros) e, se possível, com os dois seres que consideram ser os criadores de seu povo. É possível que um desses interlocutores noturnos leve o sonhador até Brasília, onde ocorrerá uma primeira entrevista com os representantes da Funai. Caso não se convençam das boas intenções do governo, ficarão apenas nesse primeiro contato onírico, recusando-se, portanto, a se encontrar de fato com o governo.

É sabido, também, que todo deslocamento de uma tribo, todo conflito com outras etnias, todo problema que coloca em risco a sobrevivência do grupo e, enfim, até mesmo o planejamento dos afazeres do dia seguinte é levado até os conselheiros oníricos. Pela manhã, os anciãos voltam a reunir-se e comparam suas respectivas experiências extrafísicas. A solução que mais se harmoniza com o tom geral das mensagens é a escolhida.

E volto a repetir: os xavantes não levam na brincadeira tais “passatempos”, não admitindo, como outras etnias, o uso de qualquer substância entorpecente ou alucinógena. Tal rito é, na verdade — segundo sua concepção — a única forma de manter a passagem do tempo. Nas palavras de um dos anciãos:

“Em Etêñiritipa existe a presença viva da força da criação. Nós somos o povo verdadeiro, nós mantemos o espírito da criação. Por que os brancos não respeitam o povo tradicional? Por que estão fazendo assim? É muito difícil tirar um povo do seu lugar. Por que os brancos querem fazer isso? Vocês dizem que gostam da terra, vocês dizem que se preocupam com a terra. Isso não é verdade. Eu não vejo isso. Seus descendentes são numerosos, mas viraram a face para a verdade da criação. Mal sabem quem são. É por isso que eu estou falando. Para revelar nossa tradição, a força que mantém o espírito da criação. O povo Aúwê vem do lugar onde começa o céu, da raiz do céu, onde o sol aparece.”

(Etêñiritipa é a aldeia mãe, chamada posteriormente de Pimentel Barbosa . Leia mais no livro Wamrêmé Za’ ara – Nossa palavra, Editora Senac. Site dos Xavantes.)

(Este artigo foi originalmente publicado no caderno Pop do jornal O Popular.)

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