Sexta-feira passada assisti, en passant, ao Globo Repórter sobre animais de estimação. Pensei que a coisa toda se resumiria àquela chatice de sempre, aaah, os lindos cãezinhos, gatinhos, coelhinhos, etc. e tal, sempre aquele negócio de gente que, não tendo filhos, tampouco troca “seu cachorro por uma criança pobre”. Até gosto de bichos, mas, puts!, pelo amor de Deus, neguinho exageeera na dose. ¿Não viajar por causa dum cachorro que, coitado, vai estranhar aquele nosso amigo que se dispôs a alimentá-lo? ¿Sair de casa à meia noite para o sacripanta peludo poder cagar? ¿Deixar o bicho lamber minha boca, meus dentes, minha língua? Ah, me poupe. Isso é bem coisa de mulherzinha. E, sinceramente, até gosto de ver mulherzinhas fazendo essas coisas, fico enternecido. Eu, porém, convivi durante dois anos com os oitenta cães da escritora Hilda Hilst, fiz amizade com vários deles, mas esses espertalhões não me enganam não. Enfim, tirando aquela grande idéia de colocar passarelas-prateleiras para os gatos poderem circular aereamente pela casa – o que significa que não precisarei mais chutá-los sempre que cruzarem meu caminho – tirando essa idéia, nada mais referente aos animais comuns me chamou a atenção nessa reportagem. O incrível mesmo foi a história da Loira, uma urubua feia, asquerosa, mas… mas… tão lindinha! Até chorei. (¿Viu como no fundo sou sensível?)
Visualize: numa bela tarde mineira, um sujeito escuta seu cão latindo homicidamente, sai correndo para verificar o que se passa e dá de cara com um urubucídio – o cachorro matara um par de aves catartidiformes. (¿Aves o quê? Vide Google.) Observa os dois bichos ali sem vida, coça-se, limpa o suor da testa, fica em dúvida se acaricia ou chuta o cão, até que, subitamente, de um buraco próximo, ouve o pio de alguma avezinha. Aproxima-se: aquele par de urubus assassinados era um casal e ali está seu filhotinho. O cara então apieda-se, enterra os pais e recolhe o animalzinho, que, coberto por uma penugem amarelada, ganha o nome de Loira.
Como bom filho que é, leva aquele presente de grego para a coitada da mãe, a quem obviamente precisa driblar – coisa simples para o ex-peão de rodeio Célio Luiz da Silva – afirmando que o bicho não é senão um pinto de marreco. Ela acha tudo muito suspeito, mas aceita cuidar da avezinha. O problema é que o bicho, ao crescer, vai ficando cada vez mais feio e piando cada vez mais esquisito. Num belo dia: “Pinto de marreco o caralho! Isso aí é um urubu!!” Tarde demais. Sim, é um urubu – mas de estimação, a quem Célio alimenta com pedaços de carne fresca e a quem beija no bico. Eeeca.
Como todo dono de bicho, Célio exageeera na dose: constrói um abrigo no telhado da casa – um verdadeiro terceiro piso alcançável apenas por uma longa escada colada parede acima – que inclui poleiro, rede, rádio (a urubua gosta de música sertaneja) e, o sonho de todo ser catartidiforme, um ventilador. ¿Pode? Claro que pode. E o Célio passa muitas e muitas tardes ali, deitado na rede, a urubua no colo: “É o amooor! Que mexe com a minh…” E também a leva para passear de moto, o que faz com que toda a cidade de Cambuí, no Sul de Minas Gerais, pare para observá-los. Paulo Gonçalves, o ótimo repórter da Globo, sai entrevistando as pessoas, colhendo alguns depoimentos impagáveis, outros nem tanto. E a urubua lá, esteja ou não a moto em movimento, pousadinha na garupa – urubuservando.
É óbvio que o Célio, que ganhou e doou a seus conterrâneos esses seus quinze minutos de fama, um dia se candidatará ou a prefeito ou a vereador. É preciso capitalizar sobre a história toda. A não ser que aquele amor seja mais puro do que se imagina a princípio. ¿Será? Vejamos.
Um dia, Célio percebe que a urubua tem dado suas escapulidas até o telhado da casa vizinha, onde permanece em sérios debates com outros seres de sua espécie: “¿se também sou capaz de voar pra bem longe?”, “¿ir embora com vocês?!”, “¿carniça?! ¿o que é carniça?” e assim por diante. Neste caso, o que faria uma pessoa que supostamente ama? Ora, prenderia seu objeto de amor, afinal, neste nosso mundo decadente, apego é de fato sinônimo de amor. A atitude mais lógica de Célio seria, portanto, fechar a abertura da tela do abrigo da Loira e ficar jogando diretas mal-humoradas para cima dela: “é, ce anda batendo a asa praquele negão, hem”, “se você sair daqui, vai é comer carne podre!”, “voar não é pra você não, sua vagabunda, você não vai conseguir nunca” e tal. ¿Célio faz isso? Não. Célio ama.
Célio, pois, pega sua moto, uma mochila, põe a Loira na garupa e se dirige até uma montanha próxima. Lá, sem tirar o capacete, retira o parapente da mochila e… Você notou? Isso mesmo. Para não perder Loira, Célio aprendeu a voar. Célio ama. Estende então o parapente, que se abre ao vento: Célio sai correndo em direção ao abismo, com o parapente a elevá-lo, enquanto grita “Vem, Loira, vem! Vem!”. E saem os dois a voar pelo céu azul de Minas Gerais… (Chuinf!) Loira, que não nega a raça e a espécie, sabe encontrar instintivamente as correntes térmicas, que é como os urubus voam, planando horas sem bater as asas, economizando energias até encontrar outro animal morto. Célio, sem parar de lhe falar carinhos, a segue. Ficam horas voando lado a lado, uma cena impressionante. Às vezes, aparecem outros urubus e Loira, por momentos, junta-se a eles. Mas volta sempre, porque seu amado é muito mais interessante que os demais pretendentes, pois sabe falar, encontrar carnes fresquinhas e suas asas são muuuito mais bonitas, coloridaças. Loira ama.
Cá entre nós, quero ver quem é a mulher que irá suportar esse amor e se casar com Célio. Pelo jeito, um dia, a primeira dama da cidade será mesmo é um urubu.
(Sobre a reportagem, veja texto de Paulo Gonçalves, “O amor está no ar em Minas Gerais“.)
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P.S. de 04-Fev-2006: A internet é mesmo um espanto. Anteontem recebi o seguinte email de Célio, que me autorizou a publicá-lo. Acho relevante porque desfaz essa minha dúvida sobre a… primeira dama, aliás, uma humana!
Este é um e-mail de contato via http://karaloka.net de
Célio Luiz da SilvaObrigado pela matéria! Gostei muito!
Bom, eu sou casado! Tenho filhos! E isso não atrapalha meu convívio com loira… Pelo contrário: meus filhos me ajudam a tratar dela, quando tenho de ir fazer alguma viagem de caminhão… Caso contrário, loira não teria o que comer, nao é?! :) Gostaria de ficar mais tempo com Loira, mas tenho que trabalhar, sustentar uma familia e a ela!… Estou tentando algumas matérias nas redes de televisão, Ana Maria Braga em Mais Você – para que Loiro José conheça Loira! rs… Preciso que Loira arrume um namorado! Se ela der cria aqui no 3° andar da minha casa, não terei problemas com florestais ou ibama… Afinal, Loira é um animal silvestre, não é um cachorrinho ou gatinho: é um Urubu!
Obrigado!
Abraços…
Célio
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