Uma amiga me contou que, anos atrás, costumava despertar fora do corpo, isto é, “sofria” projeções astrais espontâneas e involuntárias. (Sim, no jargão da psicologia, alucinações.)
“Que demais!!”, eu disse.
“Demais nada, quase morria de medo…”
E descreveu seu pânico cada vez que isso ocorria e a ansiedade que ia nutrindo por acreditar que enlouquecia, por achar que estava perdendo seus parafusos um a um. Nessas ocasiões, nunca saía de seu quarto e muito menos de perto da cama. Fechava os olhos e rezava para voltar ao aconchegante corpo.
“Ai, era horrível!”
Mas um dia, abriu os olhos e viu um desconhecido em seu quarto, parado bem aos pés da cama: “E aí? Quer ir comigo à Biblioteca de Alexandria?”
“E você foi?”, perguntei eu, empolgadíssimo.
“Deus me livre! Nem sei o que respondi. Acho que ele também comentou que a maior galera costumava ir à tal Biblioteca. E se eu falei alguma coisa foi algo do tipo ‘sai daqui, desaparece, some, evapora, por favor!’. Só sei que fechei os olhos e pedi praquilo tudo acabar. E só acabou depois que consultei um psiquiatra. Ele me receitou um remédio pra chapar e dormir…”
Fiquei então imaginando uma réplica da Biblioteca de Alexandria, num outro plano de manifestação, com todos os textos que já possuiu e muitos outros mais. Imaginei inclusive aquele caso fictício do Jorge Luis Borges, que registrei numa entrada curta deste blog. Mas ainda não é disso que quero tratar.
Há cerca de dois anos, uma ex-namorada minha teve um sonho: viu-se caminhando pelos imensos corredores duma grande biblioteca. Havia livros e pergaminhos em mesas e em prateleiras que acompanhavam todo o alto pé-direito. Ao ver alguém consultando um livro, quis saber onde estava.
“Por favor, que lugar é este?”
“Ora, é uma biblioteca”, desconversou o outro.
“Eu sei disso. Mas que biblioteca é essa?”
“É a Biblioteca de Alexandria. Se quer mais informações, fale com o bibliotecário” e apontou um homem que, de costas, folheava as páginas dum grande livro. Ela se dirigiu até ele e lhe tocou o ombro.
“Por favor, o senhor podia me dizer…” e ficou muda. O bibliotecário havia se virado para atendê-la: era o meu pai.
Meu pai cresceu no Rio de Janeiro, tendo estudado no Seminário Arquidiocesano São José – o mesmo em que estudou Carlos Heitor Cony (era duas ou três turmas mais novo) – onde foi bibliotecário e discotecário da Divisão Santo Estanislau Kostka. Aliás, costumava ler livros proibidos, à noite, com uma lanterna, sob o cobertor. Foi ali, naquele Seminário do Rio Comprido, no sopé do Morro do Corcovado, que, entre outros, se apaixonou por Jules Verne e iniciou seu plano maquiavélico de me batizar com tal nome, plano este frustrado por minha mãe que não queria ver o filho sendo chamado pelos colegas de escola de “Júlio Verme”. (Ufa!)
“Nem Júlio Verme, nem Tutankhamon, nem Ben-Hur!”, pleiteou ela.
Bom, este texto não tenciona falar da paixão do meu pai por aviões – figurativos e literais -, do seu trabalho no Loyd Aéreo e na Vasp (onde ajudou a implantar o primeiro Centro de Processamento de Dados da empresa nos anos 1960), de como conheceu minha mãe duma forma que já antecipava os relacionamentos internético-virtuais de hoje e coisas assim. (Aliás, ele editou um livro com as cartas que trocaram antes de se casar.) É apenas para dizer que o cara é um bibliotecário nato. Além dos montes de livros que adquiriu, também colecionou, desde os anos 1950, uma infinidade de revistas (quase tudo encadernado), selos, postais, fotografias, slides, filmes Super 8, fitas VHS, K7 (nas quais ele chegou a gravar mil e uma conversas de família e progamas de rádio e TV – isso antes do advento do video-cassete), discos de vinil, CDs, baralhos, jogos, artefatos eletrônicos, ferramentas e, claro, aeromodelos e peças velhas de avião. Sim, em sua casa há até mesmo altímetros, uma daquelas bússolas de painel de avião – do tipo em que uma esfera flutua num líquido – e um telégrafo de DC-6 ou DC-10, sei lá. (Havia até mesmo um fluido aditivo para dragster, graças ao qual travei o pistão da minha Mobilete umas três vezes.) O quarto que meu pai possui no porão parece um laboratório de cientista maluco, coisa típica dum aquariano leitor de Verne. E foi no meio desse caos de informações e objetos que cresci.
Desde criança – como todo rato de biblioteca – eu já “sabia” o que era um hiperlink. Ao ler um livro, certa palavra me remetia a uma enciclopédia, que me remetia a ainda outra, que por sua vez indicava outro livro, que, claro, estava ali ao alcance das mãos. E o que não estava nos livros estava nas revistas, que obviamente tratavam de todos os assuntos: notícias, história, ciência, tecnologia, informática, mulheres, sexo, religião, política, arte, literatura, esoterismo, ocultismo, ufologia, etc. Nesse final da Era do Caos (vide Harold Bloom), nada melhor para um proto-escritor do que nascer na casa dum bibliotecário universalista. (Há bibliotecas clássicas, isto é, cujo conteúdo se resume às obras supostamente imortais; e as universalistas, cujos livros vão desde Como fazer sexo com a mesma pessoa por mais de trinta anos até A Montanha Mágica, de Thomas Mann. A do meu pai, claro, pertence a este último tipo.) Enfim, cada dia que passa acredito mais nessa história de bibliotecário atávico. Do contrário por que essa obsessão por conhecimento, informação, livros e pelo Egito antigo? (Em sua casa há pirâmides, quadros, papiros e estatuetas do Egito, que ele nunca conheceu.) Ah, é óbvio, que bobagem a minha, trata-se duma coincidência. Feliz coincidência, pois, eu ter nascido na casa desse sujeito. Você pode acreditar nisso. Já eu e meu pai acreditamos que planejamos tudo cuidadosamente, antes mesmo de ele ter botado aqui, em 1º de Fevereiro de 1938, os seus pés. Para gente como a gente, no universo nada se perde, nada se cria, nem sequer a Biblioteca de Alexandria.
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