Segunda-feira retornei do FICA — Festival Internacional de Cinema Ambiental — que ocorreu em Vila Boa (atual cidade de Goiás), onde estive hospedado na casa do bandeirante Bartolomeu Bueno, hoje propriedade de minha tia avó. Creio que assisti a apenas um filme e meio… O resto do tempo passei fazendo contatos — inclusive com uma ala da minha família que eu ainda desconhecia — reencontrando velhos amigos e conhecendo novos. Entre estes está o Dib Lutfi, diretor de fotografia e câmera de “Terra em Transe”, “Como era gostoso o meu francês”, “A Falecida”, “O Desafio”, “O Ponto de Mutação”, etc., entre vários outros filmes dirigidos por Gláuber Rocha, Ruy Guerra, Nélson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Lauro Escorel, Lucélia Santos, etc. Pelo que entendi, foi graças a ele que os gringos inventaram o steadicam, afinal, precisavam imitá-lo de qualquer jeito. Alemães vieram estudar qual “equipamento” ele havia desenvolvido para manter a câmera estabilizada durante as filmagens. O cara é bacanérrimo e extremamente talentoso, um esteta genial. Tímido também. Estávamos — às vezes também Cássia Queiroz, que nos apresentou — sempre atrás dos lugares menos movimentados: “Cumpadi, vamo lá no ‘Ponto Com’ que é mais sossegado pra gente conversar…” Enquanto outros assistiam aos filmes do festival, bebíamos e jogávamos sinuca e, partindo do cinema, falávamos sobre todo tipo de assunto, incluindo “projeção astral”, já que, segundo ele, Armando Barroso — que lhe ensinou a operar uma câmera ainda na TV Rio — adorava o assunto e inclusive lhe emprestou um livro, pelo que entendi, de Silvan J. Muldoon. Ficamos um bom tempo rindo e especulando sobre qual tipo de equipamento o Armando Barroso — falecido ano passado — estaria utilizando agora, do lado de lá. Foi em meio a essa conversa que percebi o óbvio: Dib filma como quem está em projeção astral, invisível diante dos personagens e em constante movimento e interação. Isto pode parecer corriqueiro hoje em dia, mas, quando iniciou sua carreira, era costume da quase totalidade dos cineastas tratar a câmera como a “quarta parede” dum palco de teatro, isto é, como um observador distante e estático. Com ele a câmera virou um olho móvel e flutuante que mergulha nas cenas, que cerca os personagens e sublinha suas emoções. Quando Gláuber disse “câmera na mão e uma idéia na cabeça” certamente estava pensando nas mãos do Dib.
No documentário dirigido por Márcia Derraik, percebemos uma constante no depoimento dos vários diretores entrevistados: além de bem humorado, Dib é zen, e por isso sempre encontra uma solução para cada cena-desafio perpetrada pelos roteiristas e diretores. Se quisessem que a câmera andasse sobre o muro, ele andava; se quisessem que a imagem saltasse pela janela, ele saltava; se não tivessem grua, mas quissessem uma cena de grua, ele dava um jeito, e assim por diante. Para Dib, não há dificuldades invencíveis. No cinema, o diretor de fotografia “libanês” faz qualquer negócio…
Enquanto me falava sobre sua experiência com Lucélia Santos na China — onde rodaram “O Ponto de Mutação – China Hoje” — senti que talvez haja razões mais profundas para o Dib ser como é. Me disse que se emocionava às lágrimas diante de cada estátua de Buda, que invariavelmente encontrava nos templos, e que os rituais, as músicas e as paisagens o comoveram de forma inédita. Sentiu claramente, confessou-me, que já pertencera àquela gente.
Um dia, após breve silêncio diante de mais uma enorme estátua de Buda, postou-se num mirante e começou a preparar o tripé e a câmera. Tinha a intenção de filmar um trem numa estrada de ferro distante, emoldurada por montanhas e ligeiramente coberta por uma tênue neblina. Claro, ainda não havia trem, mas ele o esperaria. Os chineses que o ciceroneavam se aproximaram e o aconselharam a desistir, pois havia seis anos que ali não passava trem algum. Ele sorriu e, sem saber por que, disse: “Hoje vai passar…” E continuou no seu ritmo, tranquilo, a trocar e retrocar lentes e filtros, preparando a câmera. O resto da equipe, influenciada pelos chineses, permaneceu cética, aguardando a desistência desse fotógrafo virginiano mais que detalhista. Quando tudo ficou pronto, a neblina já estava tão espessa quanto o ceticismo das testemunhas. Mas mesmo assim Dib apontou a câmera para onde antes estava a estrada de ferro e ajustou o foco. Pensou: “Vamos lá, talvez eles estejam certos…”, e foi abrindo o plano. Neste exato instante, assomou um farol em meio ao nevoeiro e, conforme o plano foi abrindo, um trem com vários vagões foi entrando em cena. Concomitantemente, a neblina foi se dissipando, dando espaço para o quadro que ele desejara: montanha, trem, árvores. Os chineses mal podiam acreditar no que viram, estavam estarrecidos. Afinal, de onde diabos vinha aquele trem? Dib segurou a emoção e abraçou a oportunidade: filmou um trem numa estrada de ferro abandonada!! Num concílio improvisado, os guias chineses tomaram uma decisão: daquele momento em diante aquele homem já não se chamava Dib Lutfi, mas Dib Lama, termo tibetano que designa os sacerdotes e mestres. E Dib, então, meio que explicando sua timidez diante de tantos elogios ao seu trabalho e diante da avidez de seus admiradores, me disse: “Muita gente acha que somos responsáveis pelo todo da imagem que filmamos, mas não é assim que ocorre. É preciso saber lidar com o acaso e, para tanto, basta estar tranquilo, quieto, aberto para o mundo e para a vida. Não adianta ficar planejando e planejando e planejando. A gente tem que partir para a ação e, quando se ama o que se faz, quando assumimos nossa sensibilidade, tudo entra nos eixos e nos presenteia com as mais belas cenas. Filmar bem é ser simpático. Com os outros e com o mundo”.
Falou e disse, cumpadi.
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Obs.: Dois anos depois, tive o prazer de dirigir Dib Lama no VIII FICA: trata-se de um making of do festival que, na ocasião, homenageava Glauber Rocha.
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