Em Janeiro de 1998, levei ao mecânico o carro do meu sócio, uma Elba prateada. Recém havíamos retornado do reveillon de Trancoso e a bomba d’água do radiador não resistira ao trajeto Bahia-São Paulo. Nosso estúdio ficava na Vila Olympia e a oficina mecânica, no Campo Limpo, a sudoeste do bairro do Morumbi. Eu estava sozinho e temia dar mil e uma voltas pela região, o carro superaquecido, sem dar com o destino. Talvez fosse parar no Capão Redondo, pouco mais ao sul. Quem conhece São Paulo sabe que, caso se erre uma entrada, dançou, bicho, vai fazer turismo aonde não queria. Embora isso seja verdade em qualquer metrópole, na paulicéia deve-se multiplicar as distâncias por vinte e, com o radiador estourando, puts… filme de terror.
Mas… eu cheguei! Diretão. A oficina ficava numa região elevada e, de lá, avistava-se aquele familiar mar de casinhas, mais deploráveis que pobres, as quais, em ondas, vão subindo e descendo, morro após morro, até o horizonte. Em frente, do outro lado dum vale de terrenos baldios e avenidas, uma favela, claro, sempre há uma. Aliás, antes de ser atendido, pude observar um ônibus a cortá-la de ponta a ponta, qual um navio n’água. Fiquei de cara: como conseguia se ali não havia rua? “Ilusão de óptica”, disse o ajudante do mecânico, cheio de empáfia, boné dos Gaviões virado para trás, sem esquecer de pronunciar o p: “óp-tica”. Diplomático, fiz cara de quem aprendia algo novo.
“Aah…”
A rua onde estávamos, muito movimentada, era pródiga em levar os amigos do mecânico a interromper seu trabalho. Todos passavam, contavam alguma novidade, um mostrava o Opala incrementado, outro uma Brasília com o mesmo defeito de sempre, e assim por diante. Obviamente era uma área de “manos” e o Rap rolava solto em mais da metade dos carros circunstantes. Ao contrário dos bairros mais centrais, neste, as crianças infestavam a rua, correndo e berrando com energia, o que muito me lembrou a rua da minha infância, não muito longe dali.
“A gente vai ter de levantar o motor, meu, a bomba é por baixo…”
Beleza, concordei, o clima estava mesmo agradável, o sol iluminando obliquamente, a refulgir nas paredes caiadas, o que dava um pouco de estética ao lugar. E era cada figura que aparecia, um quê de casting de filme do Harlem, enquanto a criançada, em misterioso êxtase, trepava no muro vizinho, a colher mamonas num terreno baldio, tal como fiz em meus primeiros anos. Assistir ao mundo é comigo mesmo.
Andando pela oficina, dei com uma pilha de revistas Planeta dos anos 70, fato que estimulou ainda mais minha nostalgia, uma vez que meu pai não perdia um número sequer.
“São suas?”
“É, faço coleção”, respondeu o dono da oficina, um negro de seus quarenta e poucos anos, olhar sofrido e agudo. Enquanto seu assistente ia erguendo o motor, trocávamos figurinhas. O cara, aliás, tinha as mesmas opiniões que eu: a Planeta já não mantém, como nos anos 70, o conceito original de realismo fantástico idealizado por Bergier e Pauwels. Hoje, pelo contrário, costuma é cair nessa onda de órgão de divulgação de movimento ecológico e, desculpe a contradição, esoterismo popular.
“Tenho todos os livrinhos que saíram até 1973 e as primeiras revistas publicadas a partir de 74”, disse, e me mostrou o primeiro número em formato tablóide, uma matéria sobre transcomunicação na capa. “Essas revistas abriram meu conceito”, acrescentou, “não vejo mais o mundo como essa coisa sem graça e seca do dia-a-dia”. E antes que entrássemos em detalhes, fomos interrompidos pelos gritos histéricos dos garotos no terreno baldio ao lado. Perguntei-lhe se sabia o porquê de tanta euforia. E o mecânico: “Ce não sabe? Vem dar uma checada…” e caminhamos até o tal terreno, parte das crianças sobre o muro que o fronteava, atirando mamonas e pedras lá para dentro.
“Dá uma olhada por esse buraco aí.”
Olhei: um cara, em decúbito dorsal, a garganta e os antebraços cortados, a roupa empapada de sangue coagulado, a barriga intumescida, a pele arroxeada. Ainda não cheirava, mas meu estômago embrulhou instantaneamente.
“Caralho! Que é isso?”
“Isso aí, meu, é dívida de tráfico. Comprou, cheirou, não pagou: tá morto!”
Mas o que mais me abalou foi o descaso ou, dizendo melhor, a naturalidade das crianças. Para elas, aquilo era apenas mais um brinquedo. Vi como iam encostando as mamonas no cadáver e atirando-as umas contra as outras, gritando de asco e alegria.
“Se não fosse Deus e as histórias dessas revistas, meu irmão, essas cenas já teriam me derrubado há muito tempo. Mas não, a vida não pode ser só isso, o mundo não pode terminar desse jeito…”
Uma hora mais tarde, a Elba ficou pronta e o rabecão da polícia chegou. Não foi como nos filmes americanos — fitas amarelas de isolamento, perícia, investigadores, perguntas a esmo, nada disso. Era um fato comum. Botaram o cara numa bandeja e, pronto, se mandaram, fim do episódio… Pois é, como dizia, assisto ao mundo, mas ele não termina desse jeito, não mesmo. E essa não é uma negação de maluco que rejeita a realidade tal qual é. Não. É, sim, a aceitação de uma suprarrealidade, tal como a viam Bergier, Pauwels, meu mecânico e, mais profundamente, o Mestre galileu. O mundo não termina assim simplesmente porque seu fim — sua finalidade — é outra, e todos a conheceremos no devido tempo. Quer apostar? Então não aposte na política: ora et labora, com os pés no chão.
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