Resulta incrível, dada a atenção que Jorge Luis Borges aplica à obra de Swedenborg, verificar que ele mesmo não acreditava numa “imortalidade pessoal”: “Para concluir”, afirma Borges em uma de suas palestras, “quero dizer que acredito na imortalidade. Não na imortalidade pessoal, mas, sim, na cósmica. Permaneceremos imortais. Após nossa morte física, fica nossa memória e, depois de nossa memória, permanecem nossos atos, nossas realizações, nossas atitudes, toda essa maravilhosa parte da história universal, mesmo que não o saibamos – e é melhor que não o saibamos”. Esse tipo de imortalidade – bastante insatisfatória, a meu ver – é o que Ernest Becker, no livro A Negação da Morte, chama de causa sui, uma “ilusão criadora” elaborada pelo sujeito incapaz de crer no dom da imortalidade pessoal revelado por várias religiões. E, se é necessário criar ou descobrir um “sentido da vida” para si mesmo – como defendeu por sua vez Viktor Frankl -, torna-se inútil viver num mundo onde indivíduos e grupos sejam incapazes de compartilhar um sentido universal, uma “ilusão criadora” que a todos englobe. Seria, neste caso, o mesmo que incentivar uma esquizofrenia coletiva, uma completa desarticulação social.
Acredito que o problema vem do fato de que Intellectus naturaliter desiderat esse semper – “a mente espontaneamente deseja ser eterna, ser para sempre” -, como bem escreveu Tomás de Aquino, citado pelo próprio Borges, o que faz com que busquemos nos identificar com o que quer que seja – uma obra de arte, uma descoberta científica, um filho, uma empresa, um sobrenome – com a esperança de permanecermos, de não nos extinguirmos completamente. Essa identificação primária seria uma operação inócua se não ocultássemos, no mais baixo porão da nossa consciência, o medo da morte, o medo da falta de sentido, do qual nem o próprio Freud conseguiu desvencilhar-se. Para o famoso psicanalista toda pessoa normal seria um “neurótico controlado”, uma espécie de, digamos, “doente assumido e conformado”, sem qualquer esperança de redenção e transcendência. Jung cita alguns casos em que seu mestre, confrontado com situações que lhe lembravam a finitude da vida (ou a não aceitação póstuma de sua obra, o que dá no mesmo), e sem resistir ao impacto de tal experiência, desmaiou diante de seus olhos. A imortalidade de Freud consistia tão somente em sua descoberta do “princípio do prazer“, da “cena primária“, do “complexo de Édipo” e assim por diante. O resto, para ele, era conversa pra boi dormir, viagem de supersticiosos e ocultistas. Mas Ernest Becker nos mostra, fundamentado principalmente em Kierkegaard e Otto Rank, como a completa sanidade só é possível para o indivíduo que percebe não apenas a realidade de suas limitações – biológicas, físicas, racionais – mas também que a vida humana, sem um “heroísmo cósmico”, ou seja, sem um fundamento transcendente (ainda que improvável) que a justifique e impulsione é totalmente estéril, isto é, suicida.
Sim, Borges assume suas limitações estoicamente – como Freud o fez – e também deposita suas esperanças de imortalidade numa “História Universal” transcendente ao indivíduo. Mas… quando estou aqui e o livro que escrevi está numa biblioteca, ou na mente de algum leitor, não tenho consciência disso, nada sinto, não há qualquer feedback instantâneo. Viver seja na mente alheia, seja num amontoado qualquer de papéis é viver como um vírus biológico ou informático, é pura simulação de vida. Mesmo que eu me engane por anos e anos com essa ilusão auto-mistificatória, o medo da finitude, o medo da morte permanecerá oculto em alguma camada da minha mente, causando-me conflitos, neuroses, dores. Se assumir tal estoicismo existencial é, por um lado, pura demonstração de honestidade intelectual e científica, por outro, não é senão demonstrar a mais pura incapacidade de, como disse Jesus, crer como uma criança, de ter esperança inocentemente. O fenômeno da transferência – ou seja, das relações de dependência afetiva como as que ocorrem entre pais e filhos ou entre terapeuta e paciente – é humanamente universal. Todo indivíduo necessita transferir sua fome de afeto, de estabilidade emocional e psíquica para algo além e acima dele, seja este algo uma ideologia, um governante, um partido, uma família, uma instituição, um cônjuge, uma ciência, enfim, qualquer coisa que prometa sobreviver a ele próprio. E é assim que muita gente quebra a cara: deposita sua mais profunda esperança, sua mais sincera devoção, a algo tão temporal – logo, mortal – quanto ela mesma.
Pare e assuma: há um chão invisível sobre o qual se assenta sua vida, por mais que você tente negar tal fato. E se é impossível fugir dessa necessidade, por que não canalizarmos nossas energias para a mais alta e universalizante das “ilusões criadoras”, para Deus? Sim, disse ilusão, mas não creio nisto. Para mim, a possibilidade de que ocorra um feedback divino – ou seja, a Revelação, a Graça, a Iluminação, o Samadhi – é diretamente proporcional à abertura de nossa consciência à Realidade, a qual se reflete claramente numa maturidade sadia e numa tranqüila esperança. Se por um lado é sensato – ao não misturarmos nossos desejos com nossa razão – mantermos nossa integridade de caráter e nossa honestidade intelectual, por outro acho totalmente obtuso acreditar que tal atitude vá contra o que chamo de “transferência original”, ou seja, depositar a essência do sentido que criamos para nossas vidas terrestres num sentido maior e total: o eterno caminhar de nossas personalidades individuais em direção à Perfeição e Amor divinos.
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