Mês passado assisti ao documentário biográfico No Direction Home: Bob Dylan, dirigido por Martin Scorsese. Muito bom, apesar de ele se fixar tão somente no período que vai de 1961 a 1966, o que, claro, não é pouca coisa, já que mostra a metamorfose dum promissor jovem cantor de música folk num compositor de canções de protesto e, finalmente, deste último no Bob Dylan literalmente elétrico e plugado de Like a Rolling Stone.
Vale a pena detectar, nos 201 minutos de filme, o gênio, o talento, a presença de espírito e a honestidade desse figura que não apenas negou todos os rótulos que tentaram lhe impingir – cantor folk? de protesto? puff! – como fez questão de sublinhar sua completa descrença para com movimentos políticos. Participou de um ou dois festivais de protesto, foi a um grande comício em Washington junto a Martin Luther King e pronto, já sacou qual era a dessa gente que dá o sangue pela política. Valeu a experiência? Valeu, agora bola pra frente. E até hoje Dylan não entende o porquê de a imprensa querer saber o que artistas como ele, gente tão despreparada para tal, pensam sobre política. (Isso é que é um cara lúcido!)
O filme também vale pelos depoimentos, pelos trechos de entrevistas (alguns impagáveis), pelas cenas de shows e bastidores, por sua relação com Joan Baez, pela revelação de suas influências musicais e assim por diante. Em dado momento, Dylan confessa ter aprendido com Woody Guthrie, um ídolo da adolescência (– ouça esta canção dele), a cantar com certo olhar de quem sabe das coisas, o que sempre causa impacto nas platéias. Dylan aprendeu tão bem essa fórmula que tornou-se um dos primeiros artistas do século XX a ser adorado não apenas como um rockstar ou um gostosão, mas como um guru: ele parecia saber das coisas, era “a voz da sua geração”…
Mas apenas parecia, porque Dylan sempre foi, antes de tudo, um homem lúcido e fiel a si mesmo. Não entrava em barca furada. Demonstrando uma singular síntese de espírito vividamente infantil com uma consciência suspicaz de ancião, sempre soube que não sabia de tudo. E por isso mesmo tornou-se um homem que busca e busca e busca – sempre. Mas infelizmente, como já disse, o documentário vai só até 1966. Porque ao menos a busca de Sentido do judeu Dylan terminou em 1979, quando ocorreu, no fundo de si mesmo, o seguinte encontro:
Jesus tapped me on the shoulder and said, Bob, why are you resisting me? I said, I’m not resisting you! He said, You gonna follow me? I said, I’ve never thought about that before! He said, When you’re not following me, you’re resisting me.
(Jesus tocou no meu ombro e disse, Bob, por que você resiste a mim? Eu disse, Não estou resistindo a você! Ele disse, Você irá me seguir? Eu disse, Nunca pensei nisto antes! Ele disse, Quando você não está me seguindo, está resistindo a mim.)
Embora aqui e ali ainda se especule sobre um suposto retorno ao judaísmo, o certo é que Dylan sofreu o grande pathos, foi tocado em seu íntimo, o que, logo de cara, resultou em três álbuns – Slow Train Coming, Saved e Shot of Love – que muitos de seus antigos fãs viram como indícios de que ele finalmente havia enlouquecido.
Ah, a loucura! Para ser um criador (na arte, na ciência, na filosofia, enfim, na vida) é preciso mesmo cortejá-la. E indo um pouco além de Marx – o Grouxo, não o Karl – necessário também é não entrar para os clubes que o querem não como sócio, mas como fundador. Os fãs estagnados de Dylan queriam que ele se mantivesse ali com eles, atolados no olhar de quem sabe das coisas, mas que no fundo não sabem nada.
Abrirá Scorsese um dia os olhos da sua câmera para o dia em que Dylan abriu os olhos de dentro?
P.S. de 11-Fev: Louis Pauwels tem razão: nossa atmosfera cultural é totalmente avessa à sanidade mental e à serenidade do espírito. Veja o que escreveu o mais progressista dos jornais norte-americanos, o New York Times, sobre o álbum Shot of Love:
“Dylan tem escrito algumas das mais banais e pouco inspiradas canções de sua carreira. No futuro, quando os historiadores olharem para os anos 80, a conversão de Dylan ao cristianismo servirá como a metáfora perfeita para o grande vazio desta época.”
E o San Francisco Chronicle da época:
“O novo show de Dylan é de 90 minutos de música da pior qualidade.”
Na verdade, dá até uma certa compaixão pelos coitados dos jornalistas que escreveram semelhantes críticas. Mas as relações são sempre especulares. Alguém tão mergulhado no secularismo só poderia mesmo ver em Dylan seu próprio vazio. Aposto que se fosse um show de música indiana ou islâmica – religiosas, claro – todos achariam lindo, já que o multiculturalismo está na moda e ninguém entenderia nadica de nada. Mas cristianismo?! Que demodê! E quem é capaz de provar que a técnica e a performance puramente musical de Dylan, após a conversão, se deteriorou? Ninguém. O máximo que poderiam fazer é admitir que Dylan estava certo desde o começo: ele é mais poeta que músico. Mas quem, nessa época materialista, está apto a receber poesia religiosa? Até hoje quase ninguém fala da Hilda Hilst, só os iniciados…
Mas o próprio Bob Dylan pode responder a esses bundões (porque a conversão exige muita coragem):
“Agora chega Satã,
Príncipe do poder e do ar.
Ele vai transformá-lo com suas leis próprias,
Fazer ninhos de pássaros em seus cabelos;
Ele vai adormecer sua consciência,
Até que você adore o trabalho feito pelas suas próprias mãos,
Você estará servindo a estranhos
Em uma estranha e desamparada Terra.”
Satã, neste caso, não é senão um arquétipo, uma carapuça que muita gente usa e nem sequer se dá conta. Mas vai explicar isso para jornalistas sabichões, esses que servem a estranhos…