Memórias da Ilha do Capeta

RESOLVO-ME A CONTAR, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos – e, antes de começar, digo os motivos porque silenciei e porque me dedico. (*) Bem, calei-me, devo confessar, porque não dava com as palavras que iniciariam esta narrativa. Encontrei-as e plagiei-as doutro escritor de menor calibre. Não, não sinto os escrúpulos a me achacar. Urge peitar a verdade. Na academia a vida é assim mesmo – copia-se a torto, repete-se a direito…

E, enfim, dedico-me agora a narrar estes fatos por uma razão óbvia e até banal: é preciso denunciar não apenas toda a baixeza do ambiente que conheci, mas também a torpeza dos seres que por ali circulam. Sim, caro leitor, a vida num alojamento de estudantes pode ter seus momentos de glamour. Mas, ao fim e ao cabo, o que nos resta são as cicatrizes da realidade, neste caso, as cicatrizes do cárcere estudantil.

Mudei-me para a Casa do Estudante da Universidade de Brasília – vulgo CEU – em princípios da última década do século passado. Lembro-me bem, foi antes da explosão da bomba. Claro, você, leitor, sabe tão bem quanto eu que não houve outra grande guerra. Refiro-me à explosão da bomba que abastecia a caixa d’água do bloco B do CEU. De início, ninguém, nem mesmo no bloco A, conseguia identificar que estrondo horrível fora aquele. Depois, quando ficamos definitivamente sem água, descobrimos que se tratava duma manobra terrorista dum grupo radical ligado à reitoria, o C.C.C. (Comando de Caça aos Clandestinos), o qual pretendia combater a permanência de moradores ilegais – largamente patrocinada por moradores oficiais – nos apartamentos do alojamento. Sim… depois foram as grades. Grades nas janelas, nas saídas de incêndio, ao redor do campus universitário. Cada um dos moradores – que já ninguém lembrava tratar-se dum estudante – recebeu um número e um cômico uniforme listrado. Meu número, nunca me esquecerei, era… Me esqueci! (Também, hoje em dia é preciso decorar tantos números…) Bem, os porteiros, antes uns singelos senhores de meia idade, foram substituídos por truculentos rambos armados com 38. Um detetor de metais foi instalado à entrada da portaria. Nenhum dos moradores tinha qualquer dúvida: o CEU transformara-se num inferno.

Antes desses tristes acontecimentos, nós moradores já sentíamos o isolamento físico do CEU. É exato que este se localizava dentro do campus Darcy Ribeiro, na Asa Norte. Mas não passava dum apêndice do Plano Piloto, próximo ao lago Paranoá. Estávamos longe das farmácias, supermercados, bares, bancas de jornal, cinemas, livrarias, da vida das superquadras, enfim, do mundo. Éramos os aborígenes acadêmicos daquela ilha, os habitantes duma ilha dentro da ilha Brasília. Como vê, amigo leitor, tínhamos apenas um simulacro da realidade. E, então, quando fomos acometidos pelas bárbaras disposições da reitoria, assistimos à cristalização do nosso triste estado de exílio. Afinal, quem se habilitaria a aventurar-se pela cidade, usando aquele ridículo uniforme listrado? Recordo-me inclusive do episódio em que Papillon – meu companheiro de apartamento, aliás, de cela – foi confundido com o vocalista duma reles bandinha de rock da época. Mamas, Tetas Assassinas ou algo assim, não sei ao certo — como já disse não tínhamos contato com o mundo. Sei apenas que boa parte de nós, personagens daquele pesadelo, compartilhávamos do mesmo anelo: fugir.

Sempre que assisto a filmes sobre prisões, sou assaltado por duas constatações. Primeiro: não existe lugar tão terrivelmente patético quanto a Ilha do Capeta. Pois era uma prisão sem o ser. Segundo: sempre existem aqueles loucos – ou sábios, quem sabe? – que realmente se adaptam e até curtem viver nessas estéreis fortalezas. Eu poderia enumerar uma boa quantia deles. Alguns sorridentes, outros amargos, mas todos tão enraizados naquele solo quanto uma árvore do cerrado, com suas imensas raízes. Talvez seja isto. Para conseguir viver no clima ora desértico ora diluvial da região, torna-se necessário lançar profundas raízes. Ou morremos. Provavelmente de tédio.

Um destes loucos acabou por ceder seu nome àquela ilha. Sim, caro leitor, seu nome, pois no final das contas descobri que ele realmente se chamava Capeta. Isto ficará claro mais adiante. Não se afobe. Bem, alguns afirmavam que aquele indivíduo já residia ali havia pelo menos vinte anos. Outros, mais modestos, apostavam em quinze. Havia até mesmo aqueles que arriscavam o palpite de uns trinta anos. O que era o mesmo que dizer a verdade: o Capeta sempre estivera ali. Afinal, o alojamento não tinha tal idade, era mais recente. Mas são apenas detalhes. Importa deixar claro que tal morador, entre outros poucos gatos pingados, parecia amar aquele local. E seu espírito pairava onipresente por todo o CEU.

Quando o cerco da reitoria completou um ano de vigência, nós moradores, digo, prisioneiros, liderados por Gulliver, resolvemos tomar uma atitude. O tão almejado diploma – única forma de salvação – parecia tornar-se cada dia mais distante. Devido a todo aquele tratamento que recebíamos, já não tínhamos cabeça para estudar. Urgia planejar algo. Mas o quê?! Não sabíamos. Foi então que veio o golpe definitivo. Na noite de 24 de agosto daquele ano, dia de São Bartolomeu, seguranças da UnB fortemente armados e sob o comando do reitor – um simulacro do marechal Deodoro que acreditava ser a universidade um laboratório e nós, um bando de camundongos – invadiram uma a uma todas as celas de ambos os blocos do alojamento. À força retiravam os ocupantes clandestinos renitentes, os quais, a seguir, eram despidos e enfileirados no pátio entre os dois prédios. E ali, diante de nossa estupefação, foram fuzilados – com tiros de carabina de pressão 4.5mm, pois a universidade passava por dificuldades econômicas e já não tinham munição calibre 38 – e a seguir enterrados em grandes valas, abertas anteriormente pelas próprias vítimas. Uma coisa horrenda de se ver. Nós, prisioneiros oficiais, nada pudemos fazer, pois ameaçavam cortar nossa já escassa ração de pão, água e jujubas – servida diariamente no bandejão – se interferíssemos na chamada “Solução Final para a Questão do CEU”. Sabe-se que a morte por inanição é lenta e terrível. Nosso instinto de preservação – além da íntima e inconfessável satisfação por presenciar a eliminação de possíveis concorrentes no já saturado mercado de trabalho – jamais nos permitiria tão sinistro fim. Mas aquela absurda demonstração de força e poder, que não apenas ameaçava nossa escolaridade de nível superior mas também nossa vida, revelou-nos, então, a única saída para o impasse: a rebelião.

Triste sonho o da liberdade… Quem disse que aqueles alquebrados prisioneiros sabiam o significado de sublevar-se? Primeiro cogitou-se na hipótese de se matar um prisioneiro por dia, à guisa de protesto. A decisão de quem deveria morrer necessitava, segundo opinião da maioria, ser democrática. Quem mais teria essa idéia senão a maioria? Gulliver – estudante de Ciências Políticas, uma figura realmente brilhante – contra-argumentou, afirmando que aquela idéia era ridícula. Afinal, aquilo era o que a administração do alojamento desejava, a eliminação gradual dos prisioneiros e o conseqüente aumento das vagas no CEU. Para Gulliver, aqueles estudantes imbecis metidos a políticos – liliputianos, ironizava ele – levariam a rebelião ao fracasso. Infelizmente, foi ignorado e deu-se início à votação, sendo casualmente escolhido como vítima para o holocausto o próprio Gulliver. Logo ele que idealizara a rebelião e tentara abrir os olhos dos demais.

“Não subestime a estupidez dos liliputianos”, disse-lhe Capeta, sarcástico. “Podem ter o cérebro e o coração do tamanho de uma pulga, mas seus egos têm a altura de arranha-céus. E quando feridos são um incêndio numa torre.”

Gulliver estava indignado:

“Foi uma armação! Você não percebeu, Capeta?”

“Claro que foi”, sorriu este. “E daí? Bem vindo, ainda que por pouco tempo, ao mundo real.”

O estudante de Ciências Políticas foi degolado e jogado diante do prédio da reitoria. A administração do alojamento limitou-se a enviar um calouro – outro futuro candidato a funcionário público – para preencher a vaga aberta. E assim, sem atingir seus objetivos, os prisioneiros da Ilha do Capeta – até aquele momento apenas eu a tratava por tal nome – viram-se numa encruzilhada sem galinha preta. Enfim, estavam completamente confusos. O líder fora assassinado por suas próprias mãos e o caos era conseqüência óbvia. Quiseram queimar colchões, mas o Capeta lhes disse:

“Vão dormir nas cinzas, é isso o que vocês vão conseguir.”

Para não perder a pose de ativistas políticos e de membros engajados duma comunidade democrática, alguns tentaram replicar através de argumentos vazios. Os imbecis… Claro que foram todos ouvidos, para manter o tal ar de democracia – prefere-se sempre a quantidade à qualidade dos discursos, um tédio – e, por fim, aderiu-se ao aparente bom senso do Capeta. Com exceção da petição a ser enviada à reitoria, solicitando a modificação das listras verticais do nosso uniforme para listras horizontais – com o intuito de, mediante ilusão de ótica, parecermos mais gordos e saudáveis – nada mais foi resolvido.

Hoje, penso se naquele momento o caos não teria mesmo dado fim à opressão na qual vivíamos. Em muitas prisões, se na ocasião adequada, é a única forma de se atingir a quem de direito. Mas não estou tão certo disso. Talvez só se alcance realmente a “opinião pública”, e esta é um fantasma. Aparece eventualmente para nos assombrar, depois some. Acho que os últimos acontecimentos que presenciei corroboram tal afirmativa.

Numa quinta-feira, eu e Papillon conversávamos sobre seu problema com a namorada de origem latino-americana. Um problema pessoal que não vem ao caso. Estávamos em nossa cela – o saudoso 103-B – quando recebemos a visita de Robinson Crusoé, que por sinal estava de muito bom humor:

“Já resolveu suas encrencas com a cucaracha, Papillon?”, alfinetou ele. (É preciso esclarecer que fora Crusoé quem apelidara de Papillon o meu colega de cela. Ele maldosamente insinuara que este último era como o personagem do livro homônimo de Henri Charrière: adorava comer baratas, isto é, cucarachas.)

“Do México pra baixo todo mundo é cucaracha, Crusoé. Já te disse isso”, respondeu Papillon com despeito.

Crusoé deu uma risada afetada de viado. Usava sua homossexualidade como pretexto para semelhante performance. Apenas para causar efeito. Pois não era este seu comportamento cotidiano. Entre os amigos, costumava-se dizer que Crusoé era um gay sisudo, assim como seu companheiro, o Sexta-Feira, era, de forma complementar, o tesudo. Lembro-me ainda do dia em que Crusoé recebeu este sobrenome postiço. Alguém, durante uma conversa, lhe insinuou que, apesar de sua voz grave e de seus ademanes muito masculinos, ele cruzava as pernas como uma mulher.

“Cruzo, ué, e daí?”, disse Robinson na ocasião, provocando risadas.

Naquela quinta, Crusoé apareceu para nos avisar que, no dia seguinte, haveria happy-hour no seu apartamento, o dois-vinte-e-quatro-B (B de bicha, dizia ele). Era uma homenagem que ele costumava fazer ao Sexta-Feira, uma espécie de aniversário semanal, pois se conheceram nesse dia da semana. Ele nos confirmou que conseguira o açúcar e que nós deveríamos contribuir com a água, já que a bomba não voltara a funcionar. Devo informar que era a mistura dessas duas substâncias que costumávamos ingerir nas festas ilegais que organizávamos na Ilha do Capeta. Tomávamos e curtíamos o torpor, deitados pelo chão, sofás, camas e redes. Era o nosso ópio. Às vezes alguém conseguia um ou dois gramas de pó de café, que era cheirado. Mas não era o tipo de catalisador que fazia a minha cabeça.

“Vai ser meio difícil conseguir água suficiente de um dia pro outro”, disse eu. “Você devia ter avisado mais cedo que era nossa vez de arranjar.”

Papillon interveio:

“Não grila não, Graciliano, que, pelas nuvens pretas que tão lá fora, hoje mesmo deve chover.”

Nesse exato instante, um violento trovão ribombou lá fora e a porta do apartamento se abriu:

“E aí, galera?”, entrou o Capeta. “Qui é que tá rolando?”

Todos nos entreolhamos admirados: que sincronismo mais soturno! Também ficamos preocupados. Será que aquele cara pensava que era invisível? Ele não sabia que no alojamento eram proibidas as reuniões com mais de três pessoas? Se o tivessem visto, estaríamos ferrados.

“Vocês não sabem a última da Rei-thoria…”, continuou ele. (Segundo Capeta, o reitor era o nosso Rei-Thor.) “Estão enchendo o pátio de esterco. Querem plantar flores sobre as valas recheadas de presuntos…”

“Esse papo é sério?”, perguntou Crusoé.

Fomos checar. Era verdade. Pelo menos cinco caminhões revolcavam sua carga de fezes animais. Era certamente o resultado do labor de muitos bois. E tudo para cultivar… flores. Um canteiro de flores… Como de costume, tentava-se – com o colorido da mais imaculada das criaturas – encobrir uma chacina. Mas, como se vê, entre a aparente inocência e o crime esquecido, sempre há muita merda.

Naquela mesma noite, eu e Papillon fomos escondidos depositar algumas camisetas e uniformes listrados nos galhos das árvores próximas. Com a chuva que já se iniciava, teríamos muita água para recolher no dia seguinte. E, graças aos céus, choveu a noite inteira. A sexta-feira amanheceu convenientemente ensolarada, fato que só se mostrou relevante quando, ao voltarmos das aulas pela tarde, demos com um pátio coberto de cogumelos. Crusoé, bastante empolgado, exortou-nos a que o ajudássemos na colheita.

“É do bom! É do bom!”, repetia a cada minuto.

Sua intenção era propiciar, ao companheiro e aos convivas, um aperitivo mais apropriado durante a festa. Executamos o trabalho o mais discreta e rapidamente que pudemos. Aliás, a idéia de ingerir aqueles fungos não era inteiramente do meu agrado. Já vivíamos uma situação inusitada no nosso cotidiano. Como a encararíamos com a mente alterada?

“Esses cogús estão impregnados com a alma dos presuntos clandestinos…”, provocou Capeta, em meio a um esgar.

Crusoé assustou-se com aquela repentina presença:

“Estão impregnados de bosta!”, contestou.

Eu quis acrescentar que as almas daqueles mortos eram uma bosta, mas me detive. Uma ligeira sensação de terror percorreu-me o corpo. Se a cor da inocência ainda não cobria aqueles defuntos, a loucura já se avizinhava de nós sobreviventes. E naquele ambiente aquilo poderia ser perigoso.

À noite, para que conseguíssemos nos reunir no 224-B, recorremos ao costumeiro expediente. O Sexta-Feira, vestido de mulher, atraiu com chamados, gritinhos e levantamento de saia, tanto os porteiros quanto os seguranças do CEU para o cerrado vizinho. Bom conhecedor daquela mata, Sexta-Feira ia embrenhando-se cada vez mais, abandonando a roupa pelo chão, até ficar completamente nu. Seus perseguidores, vítimas da sedução e da própria cupidez, iam ficando pelo caminho, perdidos ou simplesmente satisfeitos por encontrar uma calcinha ou sutiã. Estavam acostumados a ver beldades apenas nas revistas ou na TV. E o Sexta-Feira fazia muito bem sua performance.

Pelo menos sessenta pessoas, entre prisioneiros e estrangeiros, por assim dizer, burlaram a vigilância e chegaram ao apartamento do Crusoé. O Sexta-Feira apareceu logo em seguida. Os demais foram desestimulados pelo retorno da equipe de segurança, a qual, desiludida pelo fracasso da busca, arquivou os novos troféus abandonados pela, como diziam, Dama do Cerrado.

“Da próxima ela não escapa!”, resmungava o porteiro.

No 224-B, após ingerir uma colher de açúcar seco, para economizar água, eu observava a espuma cinza-chumbo que escapava pela válvula da panela de pressão. Os cogumelos já deviam estar desintegrados. Toda a água fora aproveitada naquela poção mágica. Na penumbra do nosso improvisado chill-out, ouvíamos ambient, um som eletrônico que embalava nossa doce viagem. As pessoas, esparramadas por todos os cantos onde se pudesse deitar, cochichavam entre si ou apenas esperavam. Alguns casais aproveitavam a oportunidade para, um no outro, tornar alheia a realidade dos dias comuns. Uma garota, que eu jamais vira por ali, era a única a dançar. Movia-se lentamente. Atraia alguns olhares gulosos e, aos poucos, estimulou outros a entrarem na onda. Crusoé não arredava o pé da frente do fogão. Sexta-Feira impacientava-se:

“Pôxa, Robinson, vem dançar!”

“Calma, cara. Já tá quase pronto.”

E o chá ficou pronto. Um princípio de tumulto teve de ser imediatamente contido, ninguém queria ser ignorado na partilha. Por mim, eu não entraria naquela, não parecia sensato. Resolvi, então, entregar a sentença ao destino – se algo sobrasse seria meu. Isto decidido, subi ao mezanino, onde ficavam as camas e os armários pessoais. Ali não havia ninguém e eu poderia observar os acontecimentos.

“Não é pra deixar uma só gota no copo”, ouvi Capeta dizer com sua voz estridente, sem no entanto localizá-lo em lugar algum. Papillon, alheio à balbúrdia, atracava-se a um canto com uma colombiana.

Em poucos minutos, comecei a notar uma progressiva modificação no comportamento daquelas pessoas. Uma preguiça e uma languidez atrozes pareciam dominar inicialmente um a um. Meia hora mais tarde, muito falatório e risadas. Temi que pudessem ser ouvidos lá fora. Se os seguranças aparecessem, o que eu faria? Me esconderia? Não… Fugir correndo seria condenar-me à morte, disso eu estava certo. E, afinal de contas, por que pareciam não ouvir nada? Fiquei imaginando:

“Esta calcinha é minha!!”

“Você já ficou com uma da última vez!”

“Foi o Alcides que ficou”, diria o porteiro, injuriado.

Outros, ainda, especulariam sobre a identidade da Dama do Cerrado:

“Acho que é aquela gatinha do 208-B.”

“Será?”

Pensei cá comigo se o tal “Rei-Thor” teria capacidade para prever essas variações aleatórias no decorrer dos experimentos que fazia conosco, seus ratinhos de laboratório. Era engraçado ver como aquilo derivava da reação da natureza a seus procedimentos – o estrume de boi – e propósitos – a camuflagem de flores. “Erro instrumental”, diria ele. As Filhas do Aqueronte, diria eu.

Enquanto me entretinha com esses pensamentos, uma garota subiu ao mezanino. Quando a vi ali comigo, fiquei sem saber como reagir. Ela parecia muito impressionada com tudo o que via. Tinha um corpo perfeito. Tal constatação deixou-me excitado.

“Você pode tirar meu sutiã?”, pediu-me, levantando a parte posterior da blusa.

“Claro”, respondi, tentando imaginar o que viria em seguida.

Ela, então – virtualmente aliviada – saiu andando por entre as camas, admirando as gravuras que Crusoé pregara às paredes. Vi seus mamilos apontando sob a blusa. Fiquei mais excitado.

“Nessa xilogravura o Crusoé tentou imitar um artista alemão”, disse eu, aproximando-me.

“Qual?”

“Dürer.”

“Hmm…”, resmungou desinteressada.

Eu não sabia onde esconder tanto tesão. Ela estava evidentemente viajando. Seria sacanagem tentar algo com ela?

“Você não quer que eu guarde seu sutiã?”, perguntei, arrependendo-me logo em seguida.

Ela me olhou de cima a baixo. Era jovem apesar do rosto levemente crestado e dos pés de galinha em torno dos olhos. Aquilo certamente seria o resultado de muito rock’n’roll. Era, sem sombra de dúvida, uma junkie contumaz.

“Não”, finalmente respondeu, com desdém. “Eu tenho bolsa”, e caminhou até a escada, por onde desceu.

Eu sempre fui péssimo para as aproximações, sei disso. Mas aquele último olhar de desprezo me irritou profundamente. Desci as escadas com o sério propósito de azucrinar o primeiro louco que cruzasse meu caminho, se possível aquela mesma garota. Uma vez lá embaixo, encostei-me a uma mesa e fiquei esperando a primeira vítima. Estava realmente enervado e, quando me dava conta disso, irritava-me ainda mais. Ficar puto por causa do desprezo duma babaca. Vê se pode, remoía comigo.

Logo a seguir, fui quase totalmente apaziguado pela visão daquela outra garota, a mesma que já dançava no início da festa. De súbito, senti que era por culpa dela que ainda restava adrenalina no meu sangue. Ela tirara o casaco e usava, agora, apenas uma blusa azul e uma calça preta – ambas do mesmo tecido cintilante – que se colavam ao corpo. Era linda, possuía uns ombros frágeis, a clavícula conspícua que contrastava com os seios bem feitos, os olhos claros. Dançava, movendo-se sensualmente. Hipnotizava-me. Creio que notou meu interesse, pois foi se aproximando. As outras pessoas, pelo menos a maioria, pareciam mais preocupadas com a viagem pessoal já iniciada. Eu, no meu canto, começava a me lastimar por minha incapacidade de abordar aquela garota. Devo ter ficado sombrio. Encarei o chão.

“Você tá numa bad-trip?”, perguntou ela, aproximando-se.

“Não, não… eu não tomei nada”, respondi sem jeito.

“Então vem dançar!” e, antes que eu respondesse qualquer coisa, puxou-me decidida. Tudo bem, pensei. E comecei a dançar. Ela me encarava, sorria. Eu tentava acompanhá-la. De repente, aproximou-se do meu ouvido e perguntou se eu não queria me sentar. Achei engraçado, afinal eu mal começara a dançar. Para ela o tempo deveria ter outra dimensão. Tá legal, respondi.

“Você tem um queixo bonito”, disse ela, assim que nos sentamos.

“Obrigado.”

“Posso dar um beijo nele?”

Que garota rápida, pensei. Por que eu não era daquele jeito?

Ela beijou meu queixo e eu segurei sua cabeça. Beijamo-nos. Explorávamos, ora lenta, ora rapidamente, a boca um do outro. Puxei-a para o meu colo.

“Isso mesmo, rapaz! Vai fundo!”, disse Capeta, rindo alto.

Tentei não lhe dar atenção, mas, ao fazê-lo, creio ter feito exatamente o que me aconselhava. À nossa volta, as pessoas circulavam sem parar.

“Você tomou o chá?”, perguntei à garota, que se chamava Fernanda.

“Só um pouco. E você?”

“Nada.”

“Por que você não bebe só um pouquinho? Vai ser legal.”

Ela me olhava tão apaixonadamente que não quis recusar. Como já disse, cabia ao destino resolver a questão. Fomos ao fogão. Ainda havia o suficiente para um copo. Após alguns segundos de vacilo, virei tudo num trago. O sabor era desagradável.

“Não precisava beber tudo!”, exclamou Fernanda.

Aquele tom de censura me preocupou. Ela precisava dizer daquele jeito? Percebendo minha inquietação, emendou:

“Tudo bem, cara”, e sorriu. “Relaxa que eu vou ficar com você o tempo todo.”

Minha perturbação, no entanto, triplicou quando vi que muita gente, não suportando alucinar entre quatro paredes, preferia arriscar-se a sair do apartamento. Teriam esquecido do toque de recolher? Meu Santo Daime! E agora?

“Fica tranqüilo que eu vou avisar o Crusoé”, disse a garota.

Fernanda encontrou-o no mezanino, sob os lençóis, acompanhado de Sexta-Feira. Por sorte, estavam nas preliminares ou, de tão loucos, não lhe teriam dado ouvidos.

“Xa comigo…”, disse Sexta-Feira, lacônico.

Vestido mais uma vez como a Dama do Cerrado, Sexta-Feira saiu correndo porta afora. Logrando ultrapassar todos os que se aventuravam pelo corredor e pelas escadas, atravessou a portaria fazendo estardalhaço. Pelo menos oito homens, incluindo o porteiro, saíram no seu encalço.

“É minha! É minha!”, gritavam.

Desta vez, ao assistir àquela cena, Crusoé não se conteve. Eu e Fernanda tentamos segurá-lo, mas, forte como era, conseguiu se livrar e meteu-se cerrado adentro, atrás dos perseguidores do amante. Estava louco de ciúmes, uivava, certamente sentia-se tal como um lobisomem em busca de sangue. Desapareceu, pois, em meio à escuridão e conseguíamos tão somente ouvir seus gritos.

“Foda-se, Don Juan! Foda-se, Castañeda!”, ouvi Papillon berrar às minhas costas. Estava com a colombiana e dançavam no passeio que unia os dois blocos do CEU. Ela, com as pernas arqueadas e as mãos sobre a própria chucha, cantava algo em espanhol – “La cucaracha! La cucaracha! Ya no puede caminar!” –, e ele respondia numa língua própria. Riam até perder o fôlego, depois recomeçavam. O pátio, que deveria obrigatoriamente estar vazio e silencioso àquela hora, estava coalhado de gente. Alguns inclusive já passeavam sob o bloco A, admirando embevecidos tudo o que encontravam pela frente. Ouvia-se muitas risadas. De súbito, vimos cerca de seis homens saírem da portaria do bloco A. Traziam carabinas de pressão e cassetetes.

“Todo mundo no chão, cambada! Todo mundo no chão!”, ordenava um deles.

Fernanda puxou-me pela mão:

“Vamos pro seu apê! Rápido!”

Eu, que já estava me sentindo demasiado estranho, a segui docemente. Disse-lhe o número do meu apartamento. Ela praticamente me arrastava. Achando tudo muito engraçado, comecei a rir. Na portaria do bloco B, um gaiato telefonava para o corpo de bombeiros. Segundo ele, já havia ligado para a polícia e para a emergência médica. Para cada um contara uma história diferente, mas ria tanto que não conseguia nos dizer quais foram. Enquanto subíamos a escada, gritou-nos ainda que iria chamar a imprensa.

“Vamos logo, cara!”, repetia Fernanda.

No corredor do primeiro andar, havia muita gente jogada pelo chão. Alguns apenas observavam o piso liqüefazer-se e as paredes transformarem-se em belos mosaicos. Um olhava o teto e gritava com nítido pavor, como se visse monstros. Outro, os olhos apertados, a testa franzida, encolhia-se no chão como um feto. Mais adiante uma garota, extremamente pálida, dizia ao Capeta que estava muito mal e que tinha medo de morrer.

“Todo mundo morre um dia…”, consolava-a Capeta, com um sorriso.

Diante da minha porta, um casal chorava intensamente, abraçados. Senti um cheiro de vômito.

“Abre logo essa porta!”, disse Fernanda, nervosa.

Dei-lhe a chave, pois, como a porta pulsava feito um coração, não a pude abrir. Quando finalmente entramos, ouvimos as palavras de ordem dum segurança ali no corredor. Fernanda suspirou aliviada. Ela estava mais linda do que antes. Algo me dizia que ela era uma dessas personagens heróicas de animês ou de mangás. Um corpo magro e bonito, grandes olhos azuis, roupa brilhante coberta de mosaicos vivos.

“Minha heroína! Você me salvou!”, disse eu, abraçando-a. “Agora quero te aplicar na minha veia”, e caí na gargalhada.

“Pára com isso, cara! Você quer que eles escutem a gente?”

Fiz bico, melindrado. Ela riu. Beijei-a e ela me correspondeu. Puxava os cabelos da sua nuca, expondo seu pescoço às minhas mordidas. Comecei, então, a tirar-lhe a roupa, mas um som seco me interrompeu.

“Um tiro!!”, assustou-se Fernanda.

Corremos até a janela. Horrorizados, vimos que um dos seguranças, armado com um 38 surpreendentemente carregado, disparava aleatoriamente nos nossos companheiros. Estes, sem notar o perigo que corriam, ou permaneciam calmamente nas suas viagens individuais, ou se atiravam contra seus adversários como verdadeiros guerreiros bárbaros. Com aquele ataque, iniciou-se uma quebradeira. Pedras voavam para todos os lados. Pessoas choravam e gritavam. Alguns prisioneiros, que nem sequer haviam participado da festa, uniam-se à batalha. Um dos vidros da janela do meu apartamento partiu-se subitamente. A confusão era tanta que ainda não saberia dizer se aquilo fora uma pedra ou um tiro. De repente, um helicóptero. Voava baixo, aumentando o barulho e acrescentando uma ventania à baderna. O caos, antes tão temido, fora iniciado.

“É da televisão! É da televisão!”, gritou Fernanda.

“O quê?”, perguntei.

“O helicóptero!”

Ligamos a TV. Num canal, encontramos as imagens ao vivo da rebelião. Uma repórter narrava os acontecimentos: “…e quando os seguranças perceberam, eles já haviam iniciado os atos de vandalismo. O reitor informou que os culpados serão sumariamente executados. A polícia já se encontra a caminho do campus universitário, onde, usando de força se necessário, ajudarão na defesa do patrimônio da UnB…”

“Que canalhas!!”, exasperou-se Fernanda. “Não foram os estudantes que começaram o quebra-quebra.”

Eu não conseguia apreciar o caso com clareza. Meu pensamento voava a mil, sem parar em qualquer ponto. Estava chegando num estágio avançado da viagem. Os gritos vindos lá de fora me afligiam com pungência. Já não entendia o que a repórter dizia na TV. Além disso, sua imagem parecia-me tridimensional. Notando meu estado, Fernanda desligou o aparelho e me levou ao sofá. Também não queria que eu me aproximasse da janela.

“Relaxa, cara, por favor… Eu tô aqui com você”, ela disse.

“Mas eles estão matando todo mundo, Fernanda. A gente tem que ajudar. É a guerra! Eu nunca pensei que isto pudesse acontecer no Brasil, mas é a guerra!”

“Não é, não. É assassinato mesmo. Fica quietinho aí.”

“Mas…”

“Pára! Eu também tô com medo, será que você não percebe?”, disse ela, quase chorando. “Se você for, eu vou ficar aqui sozinha. Fica comigo, porra!”

De súbito, eu me senti dentro dum RPG. Mas extremamente real. Eu era um paladino, um Tristão que deveria proteger sua Isolda. Não poderia desapontá-la. Eu a abracei, protetor, fazendo cara de invencível e poderoso. Acho que, se ela tivesse visto meu rosto naquele momento, teria rido muito.

“Eu não vou sair, não fica preocupada”, disse, e, ao mesmo tempo, senti falta da minha espada. “Peraí.”

“Onde você vai?!”

“Já volto, calma.”

Fui até o armário do Papillon. Certamente ele teria uma espada. Era preciso apenas revistar minuciosamente cada canto e cada gaveta. Roupas, sabonetes, maconha, não. Camisinhas, bandeira do Peru, da Bolívia, não. Snorkel, nadadeiras. Será que ele costumava mergulhar no Paranoá?

Fernanda me seguiu:

“O que é que você tá procurando?”

“Uma espada”, respondi.

“O quê?! Tá maluco, é?”

Aquilo foi um balde d’água gelada. Como é que eu não havia me tocado antes? Sim, era verdade, eu estava maluco. Doidão de pedra. Seria bom, dali em diante, não esquecer disso. Caso contrário, eu me meteria em situações desagradáveis e até perigosas.

Fernanda segurou minha mão e me levou novamente até o sofá da sala.

“Vamos esperar. Uma hora tem que passar o efeito do chá”, disse ela.

“Parece que já acabou a guerra”, repliquei.

Com efeito, o pior parecia ter findado. Ouvia-se eventualmente o motor do helicóptero. Mas já não sobrevoava aquela área. Pela janela, vimos que os repórteres e cinegrafistas estavam no chão, acompanhando de perto os fatos. Umas trinta pessoas estavam deitadas de bruços, mãos na cabeça e, vez ou outra, recebiam coronhadas na nuca e nas costas, conforme chorassem ou gemessem. Alguns policiais auxiliavam na remoção dos corpos. Era terrível assistir a tudo aquilo. Sentia-me concomitantemente impotente e amedrontado. Fernanda, que parecia reprimir soluços, apertava a minha mão. Um homem, de gravata e terno cinza, começou a falar num megafone. Aquele não era outro senão o reitor.

“Graças à intervenção do governador do Distrito Federal, vocês não serão fuzilados. Contudo, receberão um castigo severo caso não denunciem o incitador de tão abjeto…”

Neste momento, gritos vindos do cerrado vizinho aos blocos interromperam o discurso do reitor. Ninguém, nem mesmo os repórteres, ousava manifestar-se. Todos permaneceram em silêncio, esperando a chegada do escandaloso visitante.

“É a voz do Crusoé! Parece que está apanhando!”, sussurrou Fernanda.

E de fato era o Crusoé. Estava algemado, os braços para trás e vinha escoltado pelo porteiro do bloco B e por mais dois seguranças. Seu rosto estava inchado, cuspia sangue e parecia não compreender o que lhe passava. Às vezes erguia a cabeça, tentando observar seus captores pela fresta que restava sob uma das pálpebras intumescidas. O reitor mantinha uma expressão severa: “Será que esse é o último?”, indagou com soberba.

O porteiro pensou na Dama do Cerrado, mas respondeu positivamente. Um dos seguranças agregou: “Ele é o líder, Magnífico. Tudo indica que o motim começou no apartamento dele.”

O reitor ficou satisfeito por ouvir aquilo. Os cinegrafistas não perdiam uma cena sequer.

“Então já temos quem nos sirva de exemplo para possíveis futuros rebeldes…”

De repente, comecei a ouvir um estranho zumbido. Minha viagem parecia não ter fim.

“Fernanda, tô ouvindo um som esquisito. Será que meu cérebro tá derretendo?”

“Não diz besteira. Eu também tô ouvindo. Parece que é dessa árvore aqui na frente do apartamento vizinho.”

Chegamo-nos à extrema esquerda da larga janela do meu apartamento. Ali, trepado na árvore, pudemos reconhecer o Sexta-Feira. Ainda estava vestido de mulher, com peruca e tudo. Apuramos os ouvidos, ele parecia sussurrar alguma coisa: “Vamos fugir, galera, daqui a pouco eles vão invadir e revistar os apartamentos.”

“Mas pra quê?”, indignou-se Fernanda. “Aqui é muito mais seguro e, além disso, eles não tem como provar que a gente tava envolvido. O Graciliano tá até melhorando da onda.”

“Só que você é uma intrusa, né garota. E se você não sabe, o Graciliano sabe que eles fuzilam os intrusos e quem deu guarida pra eles. Se vocês ficarem, tão fudidinhos…”

Nisto o Sexta-Feira tinha razão. Mas como sairíamos dali sem sermos vistos? Havia grades nas janelas e as outras saídas estavam sendo vigiadas.

“Vocês só têm de entrar no apê do Franz K, aí ao lado, e de lá vocês podem passar pra essa árvore aqui.”

“Mas e a porta trancada e as grades da janela? Vai dar no mesmo…”, repliquei.

Sexta-Feira fez uma careta: “O Franz é pirado, você não sabia? Sempre deixa a porta aberta. O maluco tá sempre injetando e sempre achando que vai virar barata. Você não lembra que o Robinson vive dizendo que o Papillon ainda vai comer ele um dia? Pois é, barata não abre porta. Por isso o apê dele nunca teve chave. Ele tem medo de ficar preso lá dentro, ou de fora, e dançar. Tem umas grades soltas também. Há muito tempo que ele planejava fugir desta colônia penal.”

“E cadê ele?”

“Tá lá na beira do lago com o Steve McQueen. Eles estão terminando um túnel de fuga. Disseram que hoje eles finalmente vão acabar fugindo deste inferno. Eu voltei pra buscar o Robinson. Ele matou dois caras. Pra mim esse lugar já era.”

Encarei a Fernanda. Ela parecia amedrontada.

“Não tem outro jeito, gata”, eu disse.

“Então vamos.”

Demos uma última olhada na direção do reitor. A cena era praticamente a mesma. Havia uma única mudança: Crusoé estava sendo amarrado ao chão, de costas, com as pernas e os braços abertos. Saímos.

No outro extremo do corredor, havia um segurança armado. Parecia, por vezes, conversar com alguém na escada. Num destes momentos, aproveitamos sua desatenção para correr até o apartamento vizinho. Com efeito, a porta estava aberta. Entramos rapidamente. Meu coração parecia descompassado. De relance, vi uma barata enorme. Estava morta. Seria possível?

“Anda logo, galera”, sussurrou Sexta-Feira, pela janela. “Os miseráveis vão detonar o Robinson!”

Localizamos as barras da grade que estavam soltas. Cederam facilmente com um leve puxão. Agora era só passar para a árvore. Correr para o cerrado não seria difícil, afinal, todas as atenções estavam centradas no reitor e no Crusoé. Teríamos, porém, que ajudar Sexta-Feira a salvá-lo. Devíamos nossas vidas a ele.

Fernanda desceu até o tronco da árvore com grande habilidade. Parecia praticar aquilo como um esporte. Eu, reprimindo minha fobia de altura, fiz o melhor que pude, embora com mais lentidão. Quando nos preparávamos para saltar ao solo, tivemos uma terrível visão. O reitor trazia um grande martelo na mão direita. À primeira vista, pretendia romper os ossos do coitado do Crusoé. Sexta-Feira estava quase em pânico. Havíamos descoberto por que o Capeta chamava o reitor de “Rei-Thor”.

“Fica frio, Sexta-Feira!”, comecei. “Acho que não vamos ter chance contra esse exército.”

Mal terminei a última frase e o reitor, após erguer a marreta acima da própria cabeça, desferiu um forte golpe nos colhões do Crusoé, o qual, após um ligeiro estremecer, desmaiou de dor. Sexta-Feira não resistiu àquela visão. De um salto – e sem que tivéssemos a oportunidade de impedi-lo – largou-se aos berros na direção do reitor.

“Meu Deus”, exclamou Fernanda.

“Caralho!”, acrescentei, a mão sobre o próprio.

Todavia, antes que Sexta-Feira atingisse seu alvo, o porteiro do bloco B, acompanhado por policiais e seguranças, avançaram sobre a Dama do Cerrado. O porteiro, particularmente, parecia excitadíssimo. Finalmente descobriria a identidade da desejada ninfa.

“Me larga, seus filhos da puta!!”, bradou Sexta-Feira com inusual voz de barítono.

O porteiro ficou boquiaberto. Um policial arrancou a peruca do nosso amigo, deixando à mostra sua cabeça raspada. Seguiu-se uma cena inesperada: o porteiro começou a gritar histericamente, deu um forte soco no estômago do Sexta-Feira, e saiu desvairado, correndo cerrado adentro. Era a nossa chance. Já não podíamos fazer absolutamente nada. Pulamos para o chão e, sem que ninguém nos visse, penetramos na mata fechada atrás do bloco. Apesar do escuro, precisávamos atingir o lago.

“Meu Deus! Meu Deus!”, repetia Fernanda.

Com medo de nos encontrarmos com o porteiro, demos uma volta muito grande e nos perdemos. Chegamos numa pista abandonada, que fora utilizada durante a construção do lago Paranoá, e seguimos à esquerda. Por ali tínhamos mais chances de esbarrar no tal túnel construído pelo Franz e pelo Steve. Tínhamos que nos apressar, em breve o sol apontaria no horizonte, por sobre o lago. Se quando houvesse luz ainda estivéssemos ali, seríamos facilmente capturados.

“Isso é maluquice, Graciliano! Pra onde é que esse túnel levaria a gente? Pro fundo do lago? Tá todo mundo tão louco quanto você tava, quando procurava aquela espada.”

Eu já me sentia completamente normal. Mas sabia de uma coisa que a Fernanda não sabia: “Fernanda, o Steve e o Franz são loucos em tempo integral. É mais fácil a gente encontrar esse túnel do que um dia atravessar o tal Canal da Mancha naquele trem…”

“É melhor a gente tentar chegar no Minas Clube”, contestou.

“Relaxa, Fê”, disse eu, beijando-a e preparando um trocadilho. “Tenha fé.”

“Puts, cara, não começa com esse papo não…”, disse, preocupada.

De súbito, enquanto caminhávamos, avistamos uma fraca luz sob uma árvore próxima ao lago. Decidimos nos aproximar sorrateiramente. Talvez fosse um dos nossos salvadores. Precisávamos arriscar. Se fosse o porteiro, bastava dar-lhe as costas e nos mandar.

“Ré, ré, ré, ré…”, ouvimos. Era uma risadinha fanhosa e tétrica. Aproximamo-nos mais. Lentamente.

“Chega mais, galera”, repetiu a vozinha satânica, e, assombrados, deparamo-nos com o Capeta em pessoa, o qual, tal como um ginete, estava sentado sobre os ombros do porteiro do bloco B, apoiando-se na sua cabeça. Este, por sua vez, estava com uma língua enorme para fora, pendurado num dos galhos da árvore por uma corda presa ao pescoço. Capeta tinha uma pequena folha de papel numa das mãos e uma vela na outra.

“Escuta só, galera”, tornou ele, rindo. E leu: “Minha Dama do Cerrado/ Ainda irei alcançar/ Sem ela dá tudo errado/ Por isso a vou desposar”, e, ao terminar, deu uma gargalhada estridente.

Eu não sabia o que dizer. Estava pasmo. Fernanda apertava minha mão com toda a energia que lhe restara. Seus olhos quase saltavam das órbitas.

“O cretino era poeta, veja você”, prosseguia Capeta; e balangava-se naquele corpo inanimado como se estivesse num balanço. “Ele escrevia quadrinhas, o Pessoa da portaria. Tu já tinha notado isso, Graciliano?”

“Nã-ão”, gaguejei.

“Pois era, o safado…”, e ria. “Sabe que esse bicho nunca anotou um recado pra mim quando tínhamos telefone? Tampouco guardou as cartas que eu recebia naquela época. E o babaca tava apaixonado pelo Sexta-Feira!”, e tornou a gargalhar com mais força. Eu nunca havia presenciado imagem semelhante. O Capeta gargalhava e movimentava-se para cima e para baixo, cavalgando os ombros do enforcado. Um horror…

“Aiou, Silver, em frente!”, gritou e, súbito, ouvimos um estouro. Diante dos nossos olhos, em meio a uma língua de fogo, vimos o Capeta evaporar no ar. Sentimos o infame cheiro de enxofre. Bem, aquele cheiro forte e incômodo só poderia ser disso. Eu não era estudante de química ou adepto do satanismo para ter certeza. A Fernanda estava paralisada, o olhar perdido algures.

“Vamo, Fê! A gente tem que achar o túnel”, insisti.

“Claro, claro… Ele tá por aí, sim… A gente vai encontrar”, murmurou ela.

Em pouco mais de quinze minutos, encontramos o buraco. Estava ali perto e, quando o vimos, já fomos nos metendo. Nada mais podia nos impressionar. Era a coisa mais natural do mundo atravessar o lago Paranoá por baixo. Aposto que éramos os únicos habitantes do Plano Piloto que ainda não o havíamos feito. No chão, em meio à lama, havia algumas pontas de cigarro, indício de que Steve McQueen realmente passara por ali. Era muito escuro ali dentro, havia goteiras, mas como o túnel não possuía desvios ou acessos secundários, não havia como nos perder. Seguíamos lentamente, parando vez ou outra para nos certificar de que era seguro continuar a travessia. Fernanda estacou algumas vezes, temendo um desabamento. Na verdade, ela tinha horror à escuridão e a lugares apertados.

“Faça de conta que estamos nascendo novamente”, eu dizia.

Continuamos a caminhada e, ao fim de quase duas horas, enxergamos luz. Era a famosa “luz no fim do túnel”. Agora faltava bem pouco. Naqueles últimos momentos, fiquei imaginando por quanto tempo aqueles dois loucos estariam escavando aquela passagem para fora do campus universitário. Era evidentemente um trabalho para um fôlego insano. E nós nem sequer os tínhamos visto. Eles estavam, segundo nos dissera Sexta-Feira, algumas horas à frente.

“Você ouviu isso?”, perguntou Fernanda.

De fato, ouvíamos vozes. Vinham da luz. Provavelmente encontraríamos o Franz e o Steve ali na saída. Pelo menos não seríamos os únicos a conseguir fugir.

Ao chegarmos ainda mais perto da luz, também ouvimos som de água, como uma cachoeira. Uma vez na saída, coloquei a cabeça para fora do buraco e tentei identificar onde estávamos. Para minha surpresa, o túnel desembocava por trás de uma pequena queda d’água, uma espécie de cascata. Teríamos chegado nalguma espécie de parque? Teríamos, em tão pouco tempo, atingido o Jardim Botânico? Decidi investigar mais acuradamente. Metendo a cabeça através da água, vi que estávamos tão somente no quintal da casa de algum nouveau-riche. Era uma dessas casas sem estilo definido, bastante grande e de extremo mau-gosto. Provavelmente estávamos numa das Mansões do Lago, ou coisa assim. Mais ao fundo havia um deque sobre o qual descansava um jet-ski. Era um ângulo do lago Paranoá que eu jamais vira antes. O sol já havia nascido. Quando me preparava para chamar a Fernanda, voltei a ouvir as vozes. Ocultei-me.

“Mas, senhor presidente, eles devem ser espiões dos seus detratores. Estou seguro de que eles apenas procuravam informações que prejudicassem sua futura reeleição. Ou pior: podem ser defensores do seu impeachment!”

“Estou cercado por paranóicos! Se não me livrar de vocês, acabarei me contaminando. Você não percebe que estes dois são apenas dois jovens estudantes? Com toda certeza fugiram a nado do campus da UnB.”

“Com todo respeito, senhor”, continuou o primeiro homem, “eu não ficaria tão tranqüilo. Isto tudo pode desembocar num Watergate prematuro. Eles podem muito bem ser um Woodward e um Bernstein juvenis.”

“Estes são apenas dois pobres loucos. Você não vê? Um deles até se diz chamar Steve McQueen…”

“Quem?!”

“Não importa. Eles são loucos, apenas isso.”

“O senhor agora é psicólogo?”

“Vamos dizer que eu apenas sei muito bem o que é a loucura…”

O outro resignou-se:

“O.K., senhor presidente. Vou chamar o reitor da UnB. Talvez o senhor tenha razão.”

“Claro que tenho”, respondeu com empáfia. “E, a propósito, coloca uma fita do Pink Floid lá no aparelho de som da solitária. Põe The Wall. Talvez com isso eles fiquem mais mansos.”

“Sim, senhor.”

Pude observar os dois se afastando. Sinceramente, naquele momento, eu não tinha a menor idéia do local onde havia me metido. Casa da Dinda? Nem me passou pela cabeça. Só pensava numa coisa: o chá de cogú deveria ter efeito perene. Não precisaria voltar a experimentá-lo. Na verdade, precisava era de outra coisa.

“Fê, vem se limpar da lama.”

Ela se aproximou, fechou os olhos e eu, com as mãos em concha, despejei água no rosto dela. Tirei sua blusa. Comecei a banhá-la. Ela estava ofegante.

“Talvez a gente não consiga sair daqui, não é?”, perguntou.

“Talvez…”

Tirei sua calça, depois a calcinha. Ela era uma beleza. Puxei-a para o meu colo, como fizera no começo da festa. Mas desta vez estávamos nus. Aconcheguei minha cabeça nos seus seios. Viajava. Dia mais louco aquele. Ai se o presidente soubesse…

Por fim, após tanto banho, precisávamos sair. Além de tudo, estávamos com fome, muita fome. A casa era guarnecida por altos muros e, sendo a casa dum político, provavelmente teria seguranças. A única saída era novamente o lago. Mas, o que fazer? O jet-ski, claro. O que mais? Decidimos que eu iria até o veículo e tentaria ligá-lo. Quando o fizesse, Fernanda viria correndo e fugiríamos.

Após me certificar de que não havia cães, passei à execução do plano. Excetuando o fato de que eu nunca me aproximara dum jet-ski antes, até que foi fácil. Dei a partida, Fernanda veio correndo e, com exceção duma moça loira, dentuça e de olhos arregalados, — que gritava “Fernando! Fernando!” — ninguém mais viu nossa fuga. Livres! Finalmente livres. Fomos até o Pontão do Lago Sul e, ali, abandonamos o veículo. Compramos uns três cachorros-quentes cada, secamo-nos ao sol e pegamos uma carona até a Asa Sul, onde Fernanda morava.

No apartamento dela – no qual residia sozinha – passamos uma semana nos recuperando e, com muito prazer, voltando a nos cansar. Lembro de sentar-me à escrivaninha – único móvel da sala, além do som, do tapete felpudo com almofadas e duma tela na parede – e de tentar escrever algo sobre o ocorrido. Não saia nada. Não fizera a digestão dos fatos. (Coisa que eu só conseguiria anos mais tarde, após perder-me entre os concretos e asfaltos de outra grande cidade.) Além disso, tampouco sabíamos o que fazer da vida. Após todos os acontecimentos, agora finalmente narrados, tanto eu como ela – que, mesmo sem morar, estudava naquela universidade – não voltamos a pôr os pés ali. Naquele dia, à escrivaninha, li: A aprendizagem que me deram/ Desci dela pela janela das traseiras da casa. Sim, fora isso, mas não queria, naquele momento – como no poema – voltar ao campo. Era penoso sentir tal coisa, mas eu realmente não tinha nenhum grande propósito e, após tanto susto em meio ao cerrado, estava cansado de ervas e árvores. Hoje, quando penso em tudo o que aconteceu, sinto que vivi um sonho. Não um pesadelo, a Fernanda foi um argumento forte contra tal idéia. Simplesmente um sonho, um sonho experienciado, real, palpável. Tão palpável que sei que algum outro Steve McQueen está por lá, provavelmente numa solitária do departamento em que estuda, brincando com um videogame portátil, atirando contra naves inimigas. Eu sei que ele tentará fugir de novo, eles sempre tentam. Com respeito a outro Franz K, já não estou tão seguro. Segundo a informação que recebi na época, o Franz, que conheci, fora preso à mesa duma das salas do prédio da reitoria. Disseram-me que o reitor desejava testar uma nova máquina nele. Uma geringonça semelhante a uma grande máquina de costura, que – através de inúmeras agulhas – escreve na pele do estudante o tipo de comportamento que ele deve ter. Disseram-me que era daquela multinacional, a AntiSkinner & Behaviorists Incorporation, e que tinha o efeito semelhante ao da mídia. Não sei bem, não entendo dessas coisas. Da mídia, aliás – naquela ocasião – lembro-me apenas que, apesar de tentar jogar a opinião pública contra os estudantes, acabou apenas por atingir um efeito contrário. Segundo as rarefeitas estatísticas – “rarefeitas” é atributo de estatística e não aspecto eventual – a população condenava vigorosamente a violência da repressão, achava que deveria ser usado algum castigo mais rápido e indolor. Mas como já assinalei, a opinião pública é apenas fumaça, indício de incêndio. Não é e jamais será extintor de pó-químico ou mesmo pá de areia. Quando o incêndio foi controlado, as negras vagas de fumo deliram-se rapidamente.

Eventualmente vem à minha consciência a idéia de que não era necessária tanta estripulia para fugir. Talvez eu devesse ter saído com minha roupa listrada até um shopping center e, ali, ter comprado, ou mesmo roubado outra roupa. Mas não, precisei enlouquecer para ver que já estava louco. Não via que as grades da prisão estavam dentro da minha própria cabeça. Um Steve sobrevive ali porque não tem grades na cabeça. Só são um tanto azarados. E, afinal, eles gostam dali, são estudiosos, têm um espírito crítico e independente. Mesmo sabendo que podem ir até um shopping e trocar de uniforme, preferem alucinar os demais acadêmicos. São pessoas assim que se tornam eminentes ali dentro.

Disseram-me ainda que o jardim entre os blocos do alojamento é hoje totalmente coberto de flores. Ali também repousam agora Papillon, Crusoé e Sexta-Feira, saudosos amigos. Outro dia, aliás, recebi um postal da Colômbia. O tal problema que Papillon tivera com a namorada já iria completar dez anos de idade. A mãe me diz que é uma menina muy chévere y guapa… Penso ainda no Gulliver. Num governo burro e totalitário, as melhores cabeças são sempre as primeiras a rolar. Pouco importa se a ação iníqua é praticada por pretensos democratas. Um sistema que se arrola democrático, sob o julgo dum sistema maior e totalitário, não pode ser democracia. Principalmente se tal sistema totalitário for a mera idéia de democracia. Em geral as idéias são vermes que habitam as tripas do cérebro. Quando há uma única e fixa, ou seja, uma encéfalo-solitária, assistimos ao nascimento dum utopista, e deste para o fascista ou para o assassino revolucionário falta apenas um pulinho. Bem, tampouco entendo de política… Pelo menos sei que o Capeta ainda anda por ali. É bom que aquele lugar seja sacudido vez ou outra. Só assim as falsas construções, assim como as más fundações, podem ser reveladas. E se, para tanto, aquela ilha não tem terremotos, que continue sendo no mínimo a Ilha do Capeta.

Graciliano Matos – Brasília, 1° de abril de 2001.

(*) Nota: este início, para quem não notou, é idêntico ao do livro “Memórias do Cárcere – vol.1”, escrito por… ah, um cara aí. (Voltar)

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(Conto extraído de A Tragicomédia Acadêmica – Contos Imediatos do Terceiro Grau.)

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