Quando a diretora e atriz Míriam Virna pisar hoje no palco do Teatro Goldoni (Casa DItália), a versão para o romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, entra em processo progressivo de desenvolvimento. Durante duas semanas, ela vai testar cada palavra escrita a partir da narrativa futurista. A idéia é perceber como os diálogos caem no ouvido do espectador num trabalho artesanal de modificação. Quem for hoje na estréia e voltar na quinta-feira da próxima semana perceberá transformações nessa dramaturgia, projeta. A realimentação será facilitada com a distribuição de passaporte, que dará direito a retorno em outra sessão, sujeito à lotação da sala.
Apesar de o romance remeter o leitor ao tempo futuro, a adaptação brasiliense, batizada de Admirável Ainda, finca a história no presente. Míriam e o escritor Yuri Vieira levaram quatro personagens do livro para o centro de um reality show. Bernard (Similião Aurélio) e Lenina (Luciana Martuchelli) estão submetidos ao programa porque sofreram crise de abstinência do soma (no livro, droga usada para o escapismo). Mustapha (Míriam Virna) é o apresentador. Eles estão ali porque tiveram forte contato com o Selvagem (personagem que vive ainda em regime de conduta da sociedade anterior, ainda submetida a regras sociais). Todos representamos o Selvagem, que é uma entidade, quase uma voz, acrescenta Míriam. Em cena, o DJ Cris Quizzik comanda nas picapes a 0trilha sonora eletrônica.
O formato de Admirável Ainda é o da experiência cênica, intermediário entre o modelo clássico e estático da leitura dramática e a dinâmica da montagem. Todos os atores vão ler em laptops o texto adaptado justamente para poder testá-lo. O processo, no entanto, é sensorial, já que trilha sonora, desenho de luz e cenário são elementos definidos. A movimentação dos atores está contida nessa experimentação, porque quero o dialogo à frente. A concentração está na palavra para justamente dar força ao teto, que tem 70% de criação minha e do Yuri.
Foi difícil encarar a transposição da obra-prima de Huxley para o palco. Míriam se enclausurou com o livro publicado em 1932. Não quis saber de outras adaptações. Apenas leu a obra com os atores e discutiu entre amigos. Yuri foi um deles. Ela pegou a estrada para Goiânia e trocou idéias com o escritor, que tem posições teóricas sobre o romance e estudos temáticos. As sugestões foram tão intensas que ele virou co-autor. Há muitas discussões abrigadas no livro. Elegemos algumas, como a incomunicabilidade humana. Tem um diálogo entre Bernard e Lenina, em que eles falam: a conversa é um estranho modo de passar o tempo, destaca.
O processo de leitura e adaptação mexeu com Míriam Virna. Ela questionou padrões do próprio comportamento, no duro jogo de ficar diante de si mesma. Sei que estou plantando uma semente com essa experimentação. Quero muito mais com esse livro, que veio num momento interessante da minha vida. Não entro mais num shopping da mesma maneira. Não me olho no espelho como antes. Acredito que a revolução venha primeiro com o indivíduo. E sinto que estou nisso.
Depois de amadurecer o processo dramatúrgico, Admirável ainda caminha para outra fase, consolidando o texto e desenhando o movimento de cena e de personagens. O projeto deve ocorrer ainda neste semestre. Até lá, Míriam divide o tempo com a bem-sucedida temporada de Fragmentos de Sonhos do Menino da Lua, em cartaz aos sábados e domingos, às 16h, no cinema do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).
Sérgio Maggio
Do Correio Braziliense
09/08/2007