Por Gilberto Freyre
Estou inteiramente de acordo com o meu amigo Olívio Montenegro de quem tantas vezes tenho discordado quando esse crítico e historiador do romance brasileiro exige do romancista qualidades superiores ás do talento puro de descripção, voltado scientifica ou jornalisticamente para trechos de vida e de organização sociaes ou para regiões ou áreas geographicas.
Um crítico norte-americano o Sr. J. Donald Adams occupou-se ultimamente do assumpto, em conferencia sobre os romancistas novos dos Estados Unidos, realizada no mesmo instituto de cultura do Briarcliffe, em Woodstock, onde acabo de falar sobre a colonização portuguesa da America.
Briarcliffe é um instituto cujas conferencias se realizam durante o verão, no norte de Nova York, dirigidas por um dos professores mais illustres da Universidade de Columbia o professor James Shotwell e sob o arvoredo de um sitio de paysagem que lembra muito, nos dias claros, a de certos condados da Inglaterra, no mez de junho. Na verdade, pertence há muito tempo a ingleses os Whitehead. Elle, o velho Ralph, já morto, foi um discipulo romantico de Ruskin e de William Morris que se mudou para os Estados Unidos e aqui no norte de Nova York contagiou meio mundo com o seu idealismo e o seu estheticismo. A viuva é quem agora mantém, com o filho, Mr. Peter Whitehead, as reuniões de artistas, de intellectuaes, de eruditos que tornaram Woodstock famosa antes da guerra de 14; quem torna possivel a realização das conferencias dirigidas pelo professor Shotwell, nas quaes este anno o Brasil teve um representante, convidado a falar não sobre os característicos da colonização portuguesa do nosso paiz como sobre os processos e os effeitos sociaes e de cultura da mestiçagem.
Mas voltando á conferencia de J. Donald Adams; sua these é a these de Olívio Montenegro; e é tambem a que eu tenho defendido e defenderia com mais vigor se em vez de simples curioso fosse realmente um entendido em assumptos de bellas-artes. Assumptos, aliás, em que toda a gente se julga com direito a opiniões. Tanto quanto nos sociologicos, tambem muito apreciado, e com razão pelos dilettant.
Para o crítico literario J. Donald Adams o realismo não basta ao romance. No romance que não vae alem da “simulação do facto” que não accrescenta a essa simulação o que o crítico norte-americano chama “visão”, Adams não encontra condições de forma de arte.
É preciso que haja, no romance, a “infusão poetica” que entre nós, nos romancistas mais novos, elle encontraria em Jorge Amado, por exemplo, animando frequentemente o seu realismo, ás vezes puramente jornalistico, de transcendencia, e tambem em José Lins do Rego. Nesse é ainda mais frequente essa illuminação da simples reportagem ou da pura chronica em que ás vezes elle e Jorge Amado se perdem pelo poder poetico de ligar de repente o particular com o geral. Tambem se verifica o mesmo em Rachel de Queiroz, em Lucio Cardoso, em Gastão Cruls, em Cornelio Penna, em Erico Verissimo, em Amando Fontes. Este, com todas as suas deficiencias de escriptor, deu ás tres meninas de Os Corumbas uma significação profunda: brasileira e humana. Uma victoria do seu poder postico sobre o realismo photographico.
Nada de se confundir essa “infusão poetica” com o chamado “romance poetico”. Trata-se de certo poder de illuminar os factos digamos assim ou as situações, psychologicas ou sociaes, conseguindo o romancista, por meio desse poder, transcender os interesses immediatos dos caracteres ou das figuras do romance, e dar á sua fala, ao que elles pensam, ao que elles fazem, uma significação que accrescente alguma coisa á nossa compreensão da vida.
Para J. Donald Adams é essa visão reunida á simulação de factos que faz a força dos romances de Elizabeth Roberts, entre os romancistas novos dos Estados Unidos; a sua superioridade sobre Hemingway, que, um tanto á maneira do nosso Jorge Amado, exagera o que a vida e os homens tem de brutal; a sua superioridade sobre Steinbeck.
Elizabeth Roberts é autora de The Time of Man. Dos nossos romancistas novos o que faz pensar mais na escritora norte-americana destacada por criticos com J. Donald Adams como exemplo da escriptora de “visão”, unida ao poder de “simulação de factos” me parece que é tambem uma mulher: Lucia Miguel Pereira. Não a Lucia dos primeiros romances, que me deram tal impressão de factos que, divergindo de optimismo de Manoel Bandeira, cheguei a me admirar da insisténcia da escriptora em publicar romances. Mas a Lucia de Amanhecer.
J. Donald Adams salienta um trecho do The Time of Man, como exemplo particularmente expressivo da “visão” unida á “simulação de factos”: é a conversa entre Jonas e Ellen. Uma completa simulação de factos. Nas mão de alguem a que faltasse “visão”, a “verdade” havia de parar ahi: e no fim o leitor saberia apenas que Jonas estava envergonhado e Ellen magoada. “Miss Roberts vae além do facto e nas suas mãos a scena se torna consideravelmente mais do que um incidente revelador de caracter, mais do que um incidente na vida do homem (Jonas) e da moça (Ellen). A scena nos dá um sentido intenso do caracter complexo das emoções humanas, da fronteira movediça entre o amor e o odio, do que há de comum aos seres humanos, homens e mulheres. Deixa de ser uma simples scena entre um homem e uma mulher para tornar-se um aspecto da relação do ser humano com a vida”. E o critico vae adeante, para salientar que aquilo é que é “infusão poetica” no romance. O alongamento da verdade, pode-se dizer: o aprofundamento do facto realizado tambem pelo historiador que não se limita a reportagem historica nem faz da historia humana aquelle capitulo da historia natural desejado por alguns.
“É a falta completa dessa qualidade na obra, por exemplo, de … Lewis diz Adams que impõe um observador tão … e agudo de todas as manifestações exteriores do caracter, e ir além da superfície da vida. Elle nunca vae acima do naturalismo nem nunca toca no que a … tem de profundo”.
Critica se pode fazer a alguns dos romancistas mais novos do Brasil, para os quaes o romance vem sendo a reportagem, a documentação, o retrato do typo e da paysagem local isolada de toda a transcendencia. A pura descripção do facto. A pura fixação do exterior dos factos.
Fonte: FREYRE, Gilberto. A visão poética no romance. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 24 nov. 1939.