O Céu e o Inferno segundo Emanuel Swedenborg

Transcrição de uma das palestras proferidas por Jorge Luis Borges, na Universidade de Belgrano, em 8 de Junho de 1978.

Swedenborg
Voltaire dizia que o homem mais extraordinário registrado pela História foi Carlos XII. Eu diria que, talvez, o homem mais extraordinário – a admitirmos tais superlativos – foi o mais misterioso dos súditos de Carlos XII: Emanuel Swedenborg.

Vou dizer algumas palavras sobre ele e, depois, falar de sua doutrina – que é o mais importante para nós.

Emanuel Swedenborg nasceu em Estocolmo, no ano de 1688, e morreu em Londres, em 1772. Uma longa vida, mais longa ainda se considerarmos as curtas vidas de então. Quase pôde completar cem anos. Sua vida se divide em três períodos. Esses períodos são de intensa atividade. Cada um deles dura – já se fizeram os cálculos – vinte e oito anos. No princípio temos um homem dedicado ao estudo. O pai de Swedenborg era um bispo luterano, e Swedenborg foi educado no luteranismo, cuja base, como se sabe, é a salvação pela graça – da qual descrê Swedenborg. Em seu conjunto de princípios, na nova religião que ele pregou, fala-se da salvação pelo trabalho, pelas obras, embora tais obras não sejam, certamente, missas nem cerimônias, mas, sim, obras verdadeiras, obras nas quais entra todo o homem, quer dizer, seu espírito e, o que é ainda mais curioso, também sua inteligência.

Pois bem, Swedenborg começa como sacerdote e logo se interessa pelas ciências. Interessam-no, sobretudo, de modo prático. Na verdade, descobriu-se que ele se antecipou a muitas invenções. Por exemplo, a hipótese nebular de Kant e Laplace. Como Leonardo da Vinci, Swedenborg planejou um veículo que poderia voar. Ele sabia que era inútil, mas via nele um possível ponto de partida para aquilo que nós atualmente chamamos de avião. Também desenhou veículos que se movimentariam debaixo d’água, como havia previsto Francis Bacon. Da mesma forma, logo se interessou – fato igualmente singular – pela mineralogia. Foi assessor para assuntos minerais em Estocolmo. Interessou-se também pela anatomia. E, como Descartes, interessou-o o exato local onde o espírito se comunica com o corpo [1].

Dizia Emerson: “Lamento dizer que ele nos legou cinqüenta volumes”. Cinqüenta volumes, dos quais vinte e cinco, pelo menos, são dedicados à Ciência, à Matemática, à Astronomia. Recusou a cátedra de Astronomia da Universidade de Upsala porque desprezava tudo que fosse teórico. Era um homem prático. Foi engenheiro militar de Carlos XII, que o respeitava. Os dois se relacionaram muito: o herói e o futuro visionário. Swedenborg idealizou uma máquina para transportar navios por terra em uma das guerras quase míticas de Carlos XII tão formosamente descritas por Voltaire. Transportaram os barcos de guerra ao longo de vinte milhas.

Mais tarde, mudou-se para Londres, onde estudou as artes da carpintaria, o trabalho do entalhador, do tipógrafo, do fabricante de instrumentos. Também esboçou mapas para o globo terrestre. Ou seja, foi um homem eminentemente prático. E eu me recordo de uma frase de Emerson, em que ele diz que “nenhum homem viveu de maneira mais realista do que Swedenborg”. É necessário que saibamos isso, que juntemos toda essa sua obra científica e prática. Foi um político, além do mais; foi senador do reino. Aos 55 anos já havia publicado uns vinte e cinco volumes sobre mineralogia, anatomia e geometria.

Aconteceu, então, o fato primordial de sua vida. O fato primordial de sua vida foi uma revelação. Recebeu essa revelação em Londres, precedida por sonhos, registrados em seu diário. Não foram publicados, mas sabe-se terem sido sonhos eróticos.

E, depois, veio a visitação, que alguns consideraram um acesso de loucura. Mas isto é negado pela lucidez de sua obra, pelo fato de que em nenhum momento nós nos sentimos diante de um louco.

Escreve sempre com grande clareza, quando expõe sua doutrina. Em Londres, um desconhecido que o havia seguido pela rua entrou em sua casa e lhe disse que era Jesus, que a Igreja estava decaindo – como a judaica, quando surgiu Jesus Cristo – e que ele tinha o dever de renovar a Igreja, criando uma terceira igreja, a de Jerusalém.

Tudo isso parece absurdo, incrível, mas temos a obra de Swedenborg. E essa obra é enorme, escrita em um estilo muito tranqüilo. Ele não argumenta em momento algum. Podemos recordar aquela frase de Emerson, de que “os argumentos não convencem ninguém”. Swedenborg expõe tudo com autoridade, com tranqüila autoridade.

Pois bem, Jesus lhe disse que o encarregava da missão de renovar a Igreja e que lhe seria permitido visitar o outro mundo, o mundo dos espíritos, com seus inumeráveis céus e infernos. Que tinha o dever de estudar a Sagrada Escritura. Antes de escrever, portanto, ele se dedicou, durante dois anos, ao estudo da língua hebraica, pois desejava ler os textos originais. Voltou a estudar os textos e neles pensou ter encontrado o fundamento de sua doutrina, um pouco à maneira dos cabalistas, que encontram razões para o que buscam no texto sagrado.

Analisemos, antes de mais nada, sua visão do outro mundo, sua visão da imortalidade pessoal[2], na qual acreditou, e veremos que toda ela se baseia no livre-arbítrio. Na Divina Comédia de Dante – bela obra literária – o livre-arbítrio cessa no momento da morte. Os mortos são condenados por um tribunal e merecem o céu ou o inferno. Ao contrário, na obra de Swedenborg nada disso ocorre. Diz-nos ele que quando um homem morre ele não se dá conta de haver morrido, já que tudo que o circunda é igual. Encontra-se em sua casa, os amigos o visitam, ele percorre as ruas de sua cidade – não pensa, enfim, que morreu. Mas, logo começa a notar algo. Começa a notar algo que a princípio o alegra e que, depois, o assusta: tudo, no outro mundo, se mostra mais vívido do que neste[3].

Sempre pensamos no outro mundo de modo nebuloso, mas Swedenborg nos diz que ocorre exatamente o contrário, que as sensações são muito mais vivas no outro mundo. Há, por exemplo, mais cores. E se imaginamos que os anjos, no céu de Swedenborg, de qualquer modo como se encontrem, estão sempre voltados para o Senhor, podemos igualmente imaginar uma espécie de quarta dimensão. Em todo caso, Swedenborg afirma que o outro mundo é muito mais intenso que este. Nele há mais cores, há mais formas. Tudo é mais concreto, tudo é mais tangível do que neste mundo. “Tanto é assim” – diz ele – “que este mundo, comparado com o que vi em minhas inumeráveis andanças pelos céus e pelos infernos, é como uma sombra. É como se vivêssemos na sombra”[4].

Aqui eu me lembro de uma frase de Santo Agostinho. Na obra Civitas Dei, Santo Agostinho diz que, sem dúvida, o gozo sensual era mais forte no Paraíso do que aqui, porque não se pode imaginar que a culpa tenha contribuído para melhorar alguma coisa. E Swedenborg diz o mesmo. Ele fala dos gozos carnais nos céus e nos infernos do outro mundo e diz que são muito mais intensos que os daqui[5].

Que acontece quando um homem morre? No princípio, não se dá conta de haver morrido. Prossegue em suas ocupações habituais, recebe a visita dos amigos, conversa com eles[6]. Logo, porém, pouco a pouco, as pessoas percebem, assustadas, que tudo é mais intenso, que há mais cores. O homem pensa: “Eu vivi todo o tempo na sombra; agora eu vivo na luz”. E isso pode alegrá-lo por um momento.

E dele logo se aproximam desconhecidos, que com ele conversam. Esses desconhecidos são anjos e demônios. Swedenborg diz que os anjos não foram criados por Deus, que os demônios não foram criados por Deus. Os anjos são homens que ascenderam à condição angelical; os demônios são homens que desceram à condição demoníaca. De modo que toda a população dos céus e dos infernos é composta por homens, e esses homens agora são anjos e agora são demônios[7].

Pois bem. Do morto se aproximam os anjos. Deus não condena ninguém ao inferno. Deus quer que todos os homens se salvem. Ao mesmo tempo, no entanto, Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio, o terrível privilégio de condenar-se ao inferno ou de merecer o céu. Quer dizer, quanto à doutrina do livre-arbítrio – que, segundo a doutrina ortodoxa, cessa após a morte – Swedenborg o conserva até depois da morte. Há, então, uma região intermediária, a região dos espíritos. Nela estão os homens, as almas daqueles que morreram, e eles conversam com anjos e com demônios[8].

Por conseguinte, chega um instante que pode durar uma semana, pode durar um mês, pode durar muitos anos – não sabemos quanto tempo pode durar. Nesse momento, o homem resolve ser um demônio, ou vir a ser um demônio ou um anjo. Em um dos casos merece o inferno. Essa região é composta por vales e, igualmente, fendas. Essas fendas podem localizar-se na parte inferior, comunicando-se com os infernos; ou na parte superior, comunicando-se com os céus. E o homem procura, conversa e fica na companhia daqueles de quem gosta. Se tem um temperamento demoníaco, prefere a companhia dos demônios; se tem um temperamento angelical, a dos anjos.

Se vocês quiserem uma descrição de tudo isso, por certo muito mais eloqüente do que a minha, a encontrarão no terceiro ato de Man and Superman, de Bernard Shaw. É curioso que Shaw jamais mencione Swedenborg. Eu creio que ele chegou a fazê-lo através de Blake, ou de sua própria doutrina. Porque no sistema de John Tanner está descrita a doutrina de Swedenborg, embora sem ser mencionada. Não creio que tenha sido um ato de desonestidade de Shaw, mas, sim, que tenha acreditado nisso de forma sincera. Presumo que Shaw tenha chegado às mesmas conclusões através de William Blake, que analisa a doutrina da salvação pregada por Swedenborg.

Bem, o homem, então, conversa com anjos, o homem conversa com demônios, e se sente atraído mais por uns do que por outros. Isto, segundo seu temperamento. Aqueles que se condenam ao inferno – já que Deus não condena ninguém – se sentem atraídos pelos demônios. Agora, que são os infernos? Os infernos, segundo Swedenborg, apresentam aspectos variados. O aspecto que teriam para nós, ou para os anjos. São zonas pantanosas, em que as cidades parecem destruídas por incêndios[9]. Mas, aí, os perversos se sentem felizes. Sentem-se felizes a seu modo, ou seja, estão cheios de ódio. E não há um monarca nesse reino; continuamente estão conspirando uns contra os outros. É um mundo de política de baixo nível, de conspiração. Isto é o inferno[10].

A seguir, temos o céu, que é o oposto – o que corresponde simetricamente ao inferno. Segundo Swedenborg – e esta é a parte mais difícil de sua doutrina – haveria um equilíbrio entre as forças infernais e as forças angelicais, necessário para que o mundo subsista. Nesse equilíbrio sempre é Deus aquele que comanda. Deus permite que os espíritos infernais permaneçam no inferno, já que só no inferno eles se sentem felizes [11].

E Swedenborg menciona o caso de um espírito demoníaco que ascende ao céu, aspira o ar do céu, ouve as conversas do céu, e tudo lhe parece horrível. O ar lhe parece fétido, a luz lhe parece negra. Então, ele volta ao inferno porque só no inferno se sente feliz. O céu é o mundo dos anjos. E Swedenborg acrescenta que todo inferno tem a forma de um demônio, e o céu a forma generalizada de um anjo. O céu é composto por sociedades de anjos, e aí se encontra Deus. E Deus é representado pelo sol.

De modo que o sol corresponde a Deus, e os piores infernos são os infernos ocidentais e os do norte. Ao contrário, a leste e ao sul, os infernos são mais mansos [12]. Ninguém está condenado a eles. Cada um busca a sociedade que deseja, busca os companheiros que deseja, e o faz segundo os estímulos que dominaram sua vida.

Os que chegam ao céu têm uma noção equivocada. Pensam que no céu ficarão permanentemente a rezar. E lhes é permitido rezar, mas, ao fim de poucos dias ou semanas, eles se cansam: dão-se conta de que isso não é o céu. Começam, naturalmente, a adular Deus, a elogiá-lo. Mas Deus não gosta de ser adulado. Do mesmo modo, essas pessoas se cansam de adular Deus. Pensam, a seguir, que podem ser felizes conversando com seus entes queridos, mas, ao fim de certo tempo, constatam que os entes queridos e os heróis ilustres podem ser tão entediantes na outra vida como nesta. Cansam-se disto e, então, entram na verdadeira obra do céu. E, neste ponto, eu me recordo de um verso de Tennyson, que diz que a alma não deseja assentos dourados; simplesmente, deseja que lhe concedam o dom de permanecer e não de cessar [13].

Quer dizer, o céu de Swedenborg é um céu de amor e, sobretudo, um céu de trabalho, um céu altruísta. Cada um dos anjos trabalha para os demais; todos trabalham uns para os outros. Não é um céu passivo. Não é uma recompensa, tampouco. Se alguém possui um temperamento angelical, obtém este céu e nele se sente bem. Mas há outra diferença muito importante no céu de Swedenborg: seu céu é eminentemente intelectual.

Swedenborg narra o caso, patético, de um homem que durante sua vida se propôs a ganhar o céu. Para tanto, renunciou a todos os gozos sensuais. Retirou-se para um lugar ermo. Lá se abstraiu de tudo. Rezou, pediu o céu. Com isso, no entanto, ele se empobrecia. E, quando morre, que acontece? Quando morre, chega ao céu, e no céu não sabem o que fazer com ele. Ele trata de escutar as conversas dos anjos, mas não as entende. Trata de aprender as artes. Trata de ouvir tudo. Tenta entender tudo e não consegue, por se haver empobrecido. É, simplesmente, um homem justo e mentalmente pobre. Concedem-lhe, então, como um dom, a possibilidade de projetar uma imagem: o deserto. No deserto, ele rezava como rezava na Terra, mas sem desligar-se do céu, porque sabe que se tornou indigno do céu através de sua penitência, por haver empobrecido sua vida, por haver recusado os gozos e prazeres da vida, o que também é um mal.

Esta é uma inovação de Swedenborg. Porque a idéia foi sempre a de que a salvação é de caráter ético. Entende-se que se um homem é justo ele se salva. “Dos pobres de espírito é o reino dos céus…”, etc. Era o que dizia Jesus. Mas Swedenborg vai mais além. Diz que isto não basta, que um homem tem que salvar-se também intelectualmente. Ele imagina o céu, sobretudo, como uma série de conversas teológicas entre os anjos. E, se um homem não pode acompanhar essas conversas, ele é indigno do céu. Portanto, deve viver sozinho [14].

William Blake, a seguir, acrescenta um terceiro tipo de salvação. Diz que podemos, ou que temos que nos salvar também por meio da arte. Blake explica que também Cristo foi um artista, já que não pregava por meio de palavras, mas de parábolas. E as parábolas são, naturalmente, expressões estéticas. Quer dizer, a salvação seria obtida por meio da inteligência, da ética e do exercício da arte [15].

E neste ponto recordamos algumas das frases em que Blake, de algum modo, suavizou as longas sentenças de Swedenborg. Quando diz, por exemplo: “O idiota não entrará no céu, por mais santo que seja”. Ou, ainda: “É preciso livrar-se da santidade; é preciso ter inteligência”.

Assim, temos esses três mundos. Temos o mundo do espírito, e, logo, ao fim de certo tempo, um homem mereceu o céu, um homem mereceu o inferno. O inferno é, na verdade, regido por Deus, que necessita desse equilíbrio. Satanás é, simplesmente, o nome de uma região. O demônio é, simplesmente, um personagem cambiante, já que todo o mundo do inferno é um mundo de conspirações, de pessoas que se odeiam, que se juntam para se atacarem umas às outras.

Portanto, Swedenborg conversa com diferentes pessoas no paraíso, com diferentes pessoas nos infernos. Tudo isso lhe é permitido para que crie a nova Igreja. E que faz Swedenborg? Não faz pregações: publica livros, anonimamente, escritos em sóbrio e árido latim. E difunde tais livros. Deste modo decorrem os últimos trinta anos da vida de Swedenborg. Vive em Londres. Leva uma vida muito simples. Alimenta-se de leite, pão, legumes. Às vezes, chega um amigo da Suécia e, então, ele se permite uns dias de descanso.

Quando foi à Inglaterra, quis conhecer Newton, porque lhe interessava muito a nova astronomia, a lei da gravitação. Jamais, porém, chegou a conhecê-lo. Interessou-se muito pela poesia inglesa. Fala, em suas obras, de Shakespeare, de Milton e de outros. Elogia-os por sua imaginação. Ou seja, ele possuía senso estético. Sabe-se que quando percorria os diversos países por onde andou – viajou pela Suécia, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Itália – visitava as fábricas, os bairros pobres. Apreciava muito a música. Era um perfeito cavalheiro da época. Chegou a ser um homem rico. Seus empregados viviam no subsolo de sua casa, em Londres (a casa foi demolida há pouco tempo) e o viam conversando com os anjos ou discutindo com os demônios [16]. Ao conversar, jamais desejou impor suas idéias. Não permitia, portanto, que rissem de suas visões; tampouco, porém, desejou impô-las; preferia mudar de assunto.

Há uma diferença essencial entre Swedenborg e os outros místicos. No caso de San Juan de la Cruz, temos descrições muito intensas do êxtase. Há o êxtase referido em termos de experiências eróticas ou através de metáforas sobre o vinho. Por exemplo, um homem que se encontra com Deus, e Deus é igual a si mesmo. Há um conjunto de metáforas. Ao contrário, na obra de Swedenborg não há nada disso. É a obra de um viajante que percorreu terras desconhecidas e que as descreve tranqüila e minuciosamente.

Por isso, sua leitura não é exatamente divertida. É espantosa e gradualmente divertida. Li os quatro volumes de Swedenborg que foram traduzidos para o inglês e publicados pela Everyman’s Library. Disseram-me que há uma tradução espanhola, uma seleção de textos, publicada pela Editora Nacional. Vi alguns registros taquigráficos a respeito dele, de toda aquela esplêndida conferência realizada por Emerson. Emerson fez uma série de conferências sobre figuras representativas. Ou seja: “Napoleão, ou o homem do mundo”; “Montaigne, ou o cético”; “Shakespeare, ou o poeta”; “Goethe, ou o homem de letras”; “Swedenborg, ou o místico”. Foi a primeira introdução que li à obra de Swedenborg. Essa conferência de Emerson, que é memorável, não está, afinal, totalmente de acordo com Swedenborg. Havia algo que o repugnava: talvez o fato de Swedenborg ter sido tão minucioso, tão dogmático. Porque Swedenborg insiste várias vezes nos mesmos fatos. Repete a mesma idéia. Não busca analogias. É um viajante que percorreu um país muito estranho; que percorreu inumeráveis céus e infernos, e os descreve.

Vamos, agora, analisar outro tema de Swedenborg: a doutrina das correlações. Tenho para mim que ele idealizou essas correlações para encontrar suas doutrinas na Bíblia. Ele diz que cada palavra na Bíblia tem pelo menos dois significados. Dante acreditava que havia quatro significados em cada trecho.

Tudo deve ser lido e interpretado. Por exemplo, se se fala de luz, a luz é, para ele, uma metáfora, símbolo evidente da verdade. O cavalo representa a inteligência, pelo fato de o cavalo nos levar de um lugar a outro. Swedenborg, portanto, nos apresenta todo um sistema de correlações. Nisto ele se parece muito com os cabalistas.

Depois ele chegou à idéia de que tudo no mundo está baseado em correlações: a criação é uma escrita secreta, uma criptografia que devemos interpretar; todas as coisas são realmente palavras, exceto as que não podemos entender e que aceitamos literalmente.

Eu me lembro daquela terrível frase de Carlyle, que leu Swedenborg, não sem certo proveito: “A história universal é algo que temos que ler e escrever permanentemente”. E é verdade. Estamos continuamente presenciando a história universal na condição de seus atores. E somos também letras e símbolos: “Um texto divino no qual somos registrados”. Tenho, em casa, um dicionário de correlações. Nele uma pessoa pode procurar qualquer palavra da Bíblia e descobrir qual o dignificado espiritual que lhe foi dado por Swedenborg.

Ele, então, acreditou sobretudo na salvação pelo trabalho. Na salvação pelo trabalho não apenas do espírito, mas também da mente. Na salvação pela inteligência. O céu, para ele, é, antes de tudo, um céu de grandes considerações teológicas. Os anjos, principalmente, conversam. Mas o céu está igualmente pleno de amor. Admite-se o casamento no céu. Admite-se tudo que existe de sensual neste mundo. Ele não deseja negar nem empobrecer nada.

Atualmente há uma igreja swedenborgiana. Creio que em algum lugar dos Estados Unidos há uma catedral de cristal. E há alguns milhares de discípulos nos Estados Unidos, na Inglaterra – sobretudo em Manchester – na Suécia e na Alemanha. Sei que o pai de William e Henry James era swedenborgiano. Encontrei swedenborgianos nos Estados Unidos, onde há uma sociedade publicando seus livros, traduzindo-os para o inglês.

É curioso que a obra de Swedenborg, embora tenha sido traduzida em vários idiomas – inclusive o hindu e o japonês – não haja exercido maior influência. Não se conseguiu chegar a essa renovação que ele desejava. Ele pensava em fundar uma nova Igreja, que seria, para o Cristianismo, o que a igreja protestante representou para a igreja de Roma.

Ele desacreditava, em parte, das duas. Não exerceu, porém, a grande influência que deveria ter exercido. Creio que tudo isso faz parte do destino escandinavo, no qual parece que todas as coisas sucederam como em um sonho, em uma bola de cristal. Por exemplo, os vikings descobrem a América vários séculos antes de Colombo, e nada acontece. A arte do conto é inventada na Islândia, com a saga, mas essa invenção não se difunde. Há figuras que deveriam ter importância mundial – a de Carlos XII, por exemplo – mas, no caso, estamos pensando em outros conquistadores cujos feitos militares talvez tenham sido menos importantes que os de Carlos XII. O pensamento de Swedenborg deveria ter sido capaz de renovar a Igreja em todas as partes do mundo, mas ele faz parte desse destino escandinavo, que é como um sonho.

Sei que na Biblioteca Nacional há um exemplar de Do céu, do inferno e suas maravilhas. Mas, em algumas livrarias teosóficas não há obras de Swedenborg. Entretanto, trata-se de um místico muito mais complexo do que os outros; estes só nos disseram haver experimentado o êxtase, e trataram de transmitir o êxtase de um modo até literário. Swedenborg é o primeiro explorador do outro mundo, o explorador que devemos levar a sério.

No caso de Dante, que também nos oferece uma descrição do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, entendemos tratar-se de ficção literária. Não se pode acreditar, realmente, que todo o seu relato se baseie em uma vivência pessoal. Além do mais, lá está o verso, que o restringe: ele não pôde experimentar o verso.

No caso de Swedenborg, é enorme sua obra. Há livros como A religião cristã na Providência Divina e, sobretudo, esse que eu recomendo a todos vocês e que fala do céu e do inferno. Esse livro foi traduzido para o latim, para o inglês, para o alemão, para o francês e, creio, também para o espanhol. Nele a doutrina é descrita com grande lucidez. É absurdo pensar que um louco a escreveu. Um louco não teria podido escrever com tal clareza[17]. Ademais, a vida de Swedenborg mudou, no sentido de que ele deixou de lado todos os seus livros científicos. Ele acreditou que os estudos científicos haviam sido uma preparação divina para que ele pudesse enfrentar as outras obras.

Dedicou-se a visitar os céus e os infernos, a conversar com os anjos e com Jesus, para, depois, nos contar tudo isso através de uma prosa serena, de uma prosa antes de mais nada lúcida, sem metáforas nem exageros. Há muitas anedotas memoráveis, como a que lhes contei acerca do homem que quer merecer o céu, mas que só tem direito ao deserto, por haver empobrecido sua vida. Swedenborg nos convida a nos salvarmos mediante uma vida mais rica. A nos salvarmos por meio da justiça, por meio da virtude e também da inteligência.

Temos, depois, Blake, que acrescenta que o homem também deve ser um artista para salvar-se. Quer dizer, tem-se aí uma quádrupla salvação: temos que nos salvar pela bondade, pela justiça, pela inteligência abstrata e, finalmente, pelo exercício da arte.

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Transcrição de uma das palestras proferidas por Jorge Luis Borges, na Universidade de Belgrano, em 8 de Junho de 1978.

(Jorge Luis Borges: Cinco visões pessoais. EdUnB, Brasília-DF, 1987.)

Notas:

[1] Descartes acreditava que o espírito se unia ao corpo por intermédio da glândula pineal. Para mais detalhes veja o livro no qual Descartes discorre sobre tal teoria: Les passions de l’ame. [voltar]

[2] Resulta incrível, dada a atenção que Borges aplica à obra de Swedenborg, verificar que ele mesmo não acreditava numa “imortalidade pessoal”: “Para concluir”, afirma Borges em uma de suas palestras, “quero dizer que acredito na imortalidade. Não na imortalidade pessoal, mas, sim, na cósmica. Permaneceremos imortais. Após nossa morte física, fica nossa memória e, depois de nossa memória, permanecem nossos atos, nossas realizações, nossas atitudes, toda essa maravilhosa parte da história universal, mesmo que não o saibamos — e é melhor que não o saibamos”. Esse tipo de imortalidade — bastante insatisfatória, na minha opinião — é o que Ernest Becker, no livro A Negação da Morte, chama de causa sui, uma “ilusão criadora” elaborada pelo sujeito incapaz de crer no dom da imortalidade pessoal revelado por várias religiões. E, se é necessário criar ou descobrir um “sentido da vida” para si mesmo — como defendeu por sua vez Viktor Frankl –, torna-se inútil viver num mundo onde indivíduos e grupos sejam incapazes de compartilhar um sentido universal, uma “ilusão criadora” que a todos englobe. Seria, neste caso, o mesmo que incentivar uma esquizofrenia coletiva, uma completa desarticulação social. Acredito que o problema vem do fato de que Intellectus naturaliter desiderat esse semper — “a mente espontaneamente deseja ser eterna, ser para sempre” –, como bem escreveu Santo Tomás de Aquino, citado pelo próprio Borges, o que faz com que busquemos nos identificar com o que quer que seja — uma obra de arte, uma descoberta científica, um filho, uma empresa, um sobrenome — com a esperança de permanecermos, de não nos extinguirmos completamente. Essa identificação primária seria uma operação inócua se não ocultássemos, no mais baixo porão da nossa consciência, o medo da morte, o medo da falta de sentido, do qual nem o próprio Freud conseguiu desvencilhar-se. Para o famoso psicanalista toda pessoa normal seria um “neurótico controlado”, uma espécie de, digamos, “doente assumido e conformado”, sem qualquer esperança de redenção e transcendência. Jung cita alguns casos em que seu mestre, confrontado com situações que lhe lembravam a finitude da vida (ou a não aceitação póstuma de sua obra, o que dá no mesmo), e sem resistir ao impacto de tal experiência, desmaiou diante de seus olhos. A imortalidade de Freud consistia tão somente em sua descoberta do “princípio do prazer”, da “cena primária”, do “complexo de Édipo” e assim por diante. O resto, para ele, era conversa pra boi dormir, viagem de supersticiosos e ocultistas. Mas Ernest Becker nos mostra, fundamentado principalmente em Kierkegaard e Otto Rank, como a completa sanidade só é possível para o indivíduo que percebe não apenas a realidade de suas limitações — biológicas, físicas, racionais — mas também que a vida humana, sem um “heroísmo cósmico”, ou seja, sem um fundamento transcendente (ainda que improvável) que a justifique e impulsione é totalmente estéril, isto é, suicida. Sim, Borges assume suas limitações estoicamente — como Freud o fez — e também deposita suas esperanças de imortalidade numa “História Universal” transcendente ao indivíduo. Mas… quando estou aqui e o livro que escrevi está numa biblioteca, ou na mente de algum leitor, não tenho consciência disso, nada sinto, não há qualquer feedback instantâneo. Viver seja na mente alheia, seja num amontoado qualquer de papéis é viver como um vírus biológico ou informático, é pura simulação de vida. Mesmo que eu me engane por anos e anos com essa ilusão auto-mistificatória, o medo da finitude, o medo da morte permanecerá oculto em alguma camada da minha mente, causando-me conflitos, neuroses, dores. Se assumir tal estoicismo existencial é, por um lado, pura demonstração de honestidade intelectual e científica, por outro, não é senão demonstrar a mais pura incapacidade de, como disse Jesus, crer como uma criança, de ter esperança inocentemente. O fenômeno da transferência — ou seja, das relações de dependência afetiva como as que ocorrem entre pais e filhos ou entre terapeuta e paciente — é humanamente universal. Todo indivíduo necessita transferir sua fome de afeto, de estabilidade emocional e psíquica para algo além e acima dele, seja este algo uma ideologia, um governante, um partido, uma família, uma instituição, um cônjuge, uma ciência, enfim, qualquer coisa que prometa sobreviver a ele próprio. E é assim que muita gente quebra a cara: deposita sua mais profunda esperança, sua mais sincera devoção, a algo tão temporal — logo, mortal — quanto ela mesma. Pare e assuma: há um chão invisível sobre o qual se assenta sua vida, por mais que você tente negar tal fato. E se é impossível fugir dessa necessidade, por que não canalizarmos nossas energias para a mais alta e universalizante das “ilusões criadoras”, para Deus? Sim, disse ilusão, mas não creio nisto. Para mim, a possibilidade de que ocorra um feedback divino – ou seja, a Revelação, a Graça, a Iluminação, o Samadhi – é diretamente proporcional à abertura de nossa consciência, a qual se reflete claramente numa maturidade sadia e numa tranqüila esperança. Se por um lado é sensato — ao não misturarmos nossos desejos com nossa razão — mantermos nossa integridade de caráter e nossa honestidade intelectual, por outro acho totalmente obtuso acreditar que tal atitude vá contra o que chamo de “transferência original“, ou seja, depositar a essência do sentido que criamos para nossas vidas terrestres num sentido maior e total: o eterno caminhar de nossas personalidades individuais em direção à Perfeição e Amor Divinos.[voltar]

[3] Ninguém ignora a quantidade de filmes que usam e abusam dessa idéia. (Eu mesmo estou com um roteiro a caminho.) Temos Ghost, Sexto-sentido, Os outros e assim por diante. Mas, sem dúvida, o melhor de todos é Uma simples formalidade, dirigido por Giuseppe Tornatore, tendo como atores principais Gérard Depardieu e Roman Polanski, o próprio. Vá locar este filme AGORA!! [voltar]

[4] É exatamente neste detalhe que residiria a diferença fundamental entre “sonho lúcido” – quando você apenas sabe que está sonhando – e “projeção ou desdobramento astral”. Neste último, nossas percepções seriam muito mais intensas do que no estado de vigília. Haveria ainda a clara sensação de que, mesmo em ambientes não iluminados, os objetos possuem luz própria. Afirma Swedenborg: “A diferença desses sentidos externos é como a diferença entre a claridade comparada com a escuridão de uma nuvem no mundo, e como a luz do meio dia com a sombra da tarde” (O céu e o inferno, parágrafo 462).[voltar]

[7] Claro que tal maneira de rotular aos homens de bom e de mau caráter não anula, por exemplo, a possível existência dos anjos (gr. Aggelos, mensageiro; lat. Angelu). A crença nos anjos – ou seja, num ser superior à natureza humana – está presente não só no Antigo e Novo Testamento, mas também nas teorias religiosas da Índia, China, Egito e Pérsia. O próprio Maomé teria feito viagem semelhante à de Swedenborg, séculos antes, guiado por ninguém menos que o próprio anjo Gabriel. Há uma classificação, que remonta aos primeiros séculos da era cristã, dividindo os anjos em três hierarquias, distribuídas cada qual em três coros: 1.º serafins, querubins e tronos; 2.º dominações, virtudes e poderes; 3.º principados, arcanjos e anjos. Os anjos das trevas seriam os anjos caídos, precipitados no abismo após sua revolta contra a misericórdia divina. Já o Livro de Urântia (www.urantia.org) – que se apresenta como uma Revelação de época (1925-1935) mas que pode ser fruto de uma sociedade secreta – traz toda uma descrição dos mais diversos seres espirituais, em sua maioria invisíveis aos mortais e aos moronciais, sendo estes últimos os próprios humanos em seu estado pós-morte, intermediário entre a matéria e o espírito puro. Nós, no esquema da Criação Divina, seríamos seres evolucionários do tempo-espaço ou, mais simplesmente, seres ascendentes, peregrinos do tempo, e os anjos, por sua vez, seriam, quando num dos universos espaço-temporais, seres descendentes – e uns e outros serviriam à Criação segundo sua natureza. Com relação aos supostos demônios, o Livro de Urântia apenas se refere a uma certa Rebelião de Lúcifer, o qual teria apresentado, numa célebre assembléia – impossível, eu diria, de se imaginar – uma Declaração de Liberdade, reivindicando, assim, poder total sobre o Sistema de Mundos que governava, sem a necessidade de prestar contas às normas de seu superior, Miguel de Nebadon (Jesus Cristo). Para evitar que a rebelião propagasse para outros sistemas, Gabriel fez, em termos logísticos, o que Lúcifer reivindicava: desconectou seu Sistema de Mundos do resto do Universo Local (Nebadon), deixando-o sem ter como manter as comunicações e o transporte entre os vários mundos habitados. (Na minha cabeça, eu o imagino dizendo: “Quer ficar livre de nós? Então tá…”, e puxou a tomada.) Pois bem, os seres que aderiram a essa infame rebelião seriam os tais anjos caídos. (Aliás, foi baseado no Livro de Urântia que Benítez escreveu a Rebelião de Lúcifer, tendo sido inclusive acusado de plágio na Espanha. Ora, se ele acreditar no livro enquanto revelação e, portanto, enquanto texto sagrado, onde está o plágio? Quando Thomas Man escreveu José e seus irmãos, estaria plagiando o Antigo Testamento?) Swedenborg, portanto, desconhecendo toda essa hipotética história, que só poderia ser conhecida por Revelação mas não como evidência direta, teria ficado satisfeito com apenas visitar os humanos em seu novo estado intermediário, não importando aí o quão evoluídos estivessem: para ele ou eram anjos ou eram demônios.[voltar]

[8] O incrível Livro de Urântia acrescenta mais um interessante detalhe a essa questão do livre-arbítrio, o qual, não sendo eu lá muito erudito, não sei quantas vezes foi já defendido com essas quase platônicas palavras: só ganha a vida eterna quem escolhe o bem, ou seja, só mantém viva sua personalidade aquele que decidiu, por livre e espontânea vontade, aproximar suas decisões morais da perfeição divina. Diz o Livro de Urântia, no capítulo 111:

“A evolução material te proveu com uma máquina vital, teu corpo; o Pai mesmo te dotou da realidade espiritual mais pura conhecida no universo, teu Ajustador de Pensamento ou Monitor Misterioso. Mas em tuas mãos, sujeita a teu livre-arbítrio, te deu a mente, e é pela mente que viverás ou morrerás. É dentro da mente e com a mente que tomas essas decisões morais que te permitem alcançar semelhança com o Monitor, que é semelhança com Deus. A mente mortal é um sistema temporal de intelecto emprestado aos seres humanos para uso durante uma vida material, e segundo usem esta mente, estarão ou aceitando ou rejeitando o potencial da existência eterna. A mente é praticamente tudo o que tens de realidade universal, e está sujeita à tua vontade, e a alma -o eu moroncial -ilustrará fielmente a colheita das decisões temporais que faz o eu mortal. “

Aqui poderíamos indagar: se só adquire a vida eterna quem busca o bem, ¿por que algumas pessoas sobrevivem à morte material, segundo Swedenborg, permanecendo no inferno? Pelo raciocínio acima, acho que a conclusão mais plausível seria: se há um “potencial de vida eterna”, há também níveis de atualização desse potencial. Isto é, quanto mais alto o nível de “decisões morais benéficas” atualizadas, mais próximos estaremos de Deus após a morte material. Você teve uma única atitude benéfica em vida? Então continuará vivo após a morte física no mais baixo dos infernos. Mas não se preocupe: creio que sempre haverá tempo de se preocupar com seus semelhantes e entrar no esquema de “amar ao próximo como a ti mesmo”, para tanto, seu livre-arbítrio permanecerá intacto. Segundo o próprio Swedenborg (O céu e o inferno, parágrafo 480): “O homem, depois da morte, permanece na eternidade tal qual ele é quanto à sua vontade ou ao seu amor reinante”. E isto, segundo ele, quer dizer: ao morrer, o homem natural – aquele que segue ou não uma certa moral por motivos puramente superficiais ou externos (temporais) – irá ter com seus semelhantes, ou seja, com aqueles que levaram uma vida sem significado espiritual, sem a perspectiva da eternidade; enquanto que o homem interior, por mais que sua conduta tenha sido semelhante ao comportamento moral do homem natural, irá presenciar a atualização de suas motivações mais íntimas, irá ter com o resultado de uma vida fundada em alicerces espirituais, eternos. Porque, após a morte, o homem torna-se completamente o seu próprio interior, seja este oco, seja este pleno.[voltar]

[10] Neste ponto percebemos como o inferno é mais uma situação – condicionada por estados mentais – do que um lugar. Assim, podemos ficar seguros de que, em muitos lugares deste planeta físico, é possível encontrar o próprio inferno. Mas tanto neste quanto no anterior – no inferno pós-morte – há um porém: não é verdade que os seres que nele se encontram estão felizes. Eles podem ficar temporariamente satisfeitos – com prazeres, com o poder – mas jamais experimentarão uma paz de espírito duradoura. Grande parte permanece ali enquanto vítima raivosa à espera do momento da vingança. Muitos são inimigos apenas de si mesmos, seja por culpa, remorso ou ressentimento. Em suma, Swedenborg tem toda a razão: cada qual condena a si mesmo. “O todo da vontade e do amor do homem permanece nele depois da morte; aquele que quer e ama um mal no mundo, quer e ama o mesmo mal na outra vida; ele não tolera então que se separe dele. Daí vem que o homem que está no mal está ligado ao inferno e também está realmente quanto ao seu espírito no inferno; e depois da morte não deseja outra coisa senão estar onde está seu mal. Por isso, é o homem que, depois da morte, se precipita no inferno por si mesmo e não o Senhor que o precipita” (O céu e o inferno, parágrafo 547).[voltar]

[11] Eu, particularmente, não creio que as coisas sejam assim. Não me parece que a Criação necessite de um inferno para poder contrabalançar a existência dos “céus”. A troco de quê seria assim? Prefiro a doutrina do Livro de Urântia, quando afirma que apenas nas regiões supra-universais onde ocorrem rebeliões – como a de Lúcifer – existem mundos em conflito por tempo indeterminado. Nos demais, as raças e povos evolucionários parariam paulatinamente com semelhante confusão e belicismo, conforme fossem recebendo as distintas Revelações de época: 1.º a chegada do “Príncipe Planetário” e de seu séqüito de educadores; 2.º a chegada dos representantes da “raça violeta”, ou seja, do casal adâmico; 3.º a efusão de um Filho Magisterial (um missionário Melquisedek); 4.º a efusão de um Filho Auto-outorgado e, finalmente, 5.º a chegada de um Filho Instrutor. Após estas fases, o planeta entraria numa etapa chamada Era de Luz e Vida, máxima expressão evolutiva dos mundos espaço-temporais. Ainda segundo o Livro, nossa evolução planetária teria sido interrompida ainda na primeira fase, uma vez que não só o Príncipe Planetário mas também metade de seu séqüito aderiram à rebelião luciferina, ocasionando assim nossa quarentena planetária. Aliás, as diversas lendas e mitos politeístas dos povos antigos teriam origem no Príncipe e em seu séqüito de cem imortais, todos, com exceção do Príncipe, antigos mortais evolucionários de outros planetas, os quais se alistaram voluntariamente em semelhante aventura. Agora – concluindo – se Deus é perfeito, ¿por que tais rebeliões ocorreriam? Ora, em primeiro lugar haveria um Universo Central ou Modelo, no qual a rebelião seria impossível, uma vez que ali reina a perfeição espiritual completa. Tal universo, diz-se, existiria desde sempre. Já nos universos evolutivos a imperfeição parcial dos mundos e seres poderia levar, graças ao livre-arbítrio, a decisões e atitudes equívocas por parte de seus governantes. E, no entanto, nada disso poderia surpreender ou enfurecer a Deus. Muito pelo contrário: o Livro tem um capítulo dedicado às vantagens que as rebeliões podem trazer a um mundo evolucionário. Os peregrinos do tempo terrestres, ou humanos evolucionários da Terra, ao atingirem determinados mundos espirituais, são reconhecidos como possuidores de fé e vontade inabaláveis, uma vez que, ao contrário de outros povos, não viram mas creram. O que me lembra G. K. Chesterton: “Amar significa amar o que é difícil de ser amado, do contrário não será virtude alguma; Perdoar significa perdoar o imperdoável, do contrário não será virtude alguma; Fé significa crer no incrível, do contrário não será virtude alguma. E esperar significa esperar quando as coisas são sem esperança, do contrário não será virtude alguma”.[voltar]

[13] O Livro de Urântia afirma que a vida pós-morte é divida em partes iguais de diversão e trabalho (serviço). E trabalho aqui pode, também, ser entendido como estudo e criação artística. Trabalhar pelo quê? Pelo estabelecimento de Luz e Vida em todo o Grande Universo. Já Swedenborg, além de discorrer sobre os prazeres pós-morte, afirma que “as funções nos céus não podem ser enumeradas nem descritas em particular, (…) porque elas são inúmeras. (…) Há nos céus, como nas terras, um grande número de administrações, porque há negócios eclesiásticos, civis e domésticos” (O céu e o inferno, parágrafos 387 e 388).[voltar]

[14] Isto também não é beeem assim. Não devemos, na minha opinião, imaginar que nas esferas superiores só haja lugar para discussões entre acadêmicos e eruditos, cientistas geniais e filósofos, inventores e engenheiros do ITA. Se fizermos isso acabaremos preferindo as gostosas e os marombas do inferno, não é não? Para mim, esses seres são inteligentes na medida em que suas mentes correspondam mais harmonicamente aos ditames do espírito. Conheço dezenas de pessoas, de origem humilde ou não, muito mais sábias – segundo esse modo de analisarmos a questão – do que qualquer nerd de laboratório. Inteligência, para mim, é amar e estar atento para que se possa responder, da melhor maneira possível, ao desafio que a vida é. O próprio Swedenborg, diferentemente do que diz Borges, afirma nos parágrafos 351 e 352 de “O céu e o Inferno“: “No mundo, crê-se que os que sabem muito, tanto no que diz respeito às doutrinas da igreja, como à Palavra ou às ciências, vêem as verdades mais profundamente e com mais penetração do que os outros, e que assim eles têm mais inteligência e sabedoria; e tais indivíduos têm de si próprios semelhante opinião. Mas vai-se dizer agora, no que segue, o que é a verdadeira inteligência e a verdadeira sabedoria, o que é a inteligência bastarda e a sabedoria bastarda, e o que é a falsa inteligência e a falsa sabedoria. A verdadeira inteligência e a verdadeira sabedoria consistem em ver e perceber o que é a verdade e o bem, e, por conseguinte, o que é o falso e o mal, e em fazer entre eles uma justa distinção, e isto segundo uma intuição e uma percepção interiores. (…) A inteligência bastarda e a sabedoria bastarda consistem em não ver e em não perceber pelo interior o que é a verdade e o bem, nem por conseguinte o que é o falso e o mal, mas somente em crer que o que é dito por outros é a verdade e o bem, ou o falso e o mal, e depois confirmá-lo. Como esses vêem a verdade não segundo a verdade, mas segundo outrem, eles podem aprender e crer o falso como também a verdade, e até confirmá-lo ao ponto que ele apareça como verdade; porque tudo o que é confirmado se reveste de uma aparência de verdade, e nada há que não possa ser confirmado”.[voltar]

[17] Minha concepção pessoal de loucura tem tudo a ver com os dois pilares da Cibernética: comunicação e controle. Para mim, uma pessoa atinge um estado de loucura, não simplesmente quando passa a ter um comportamento evidentemente absurdo ou violento, ou quando tem percepções sensíveis anormais (tais como ouvir vozes), mas quando perde o controle de si mesmo, de suas reações ao mundo e, enfim, de sua consciência – o que é o mesmo que dizer: perde o contato – ou comunicação – com a Realidade da Criação. (Nesse sentido, 50% da população mundial é completamente destrambelhada.) E, como já disse em nota anterior, em geral – descontando certas causas genéticas ou acidentes fisiológicos – o único fator responsável por fazer alguém “perder o controle de si” está no hiato entre suas experiências e (a adequação destas com) sua visão de mundo. O não entendimento de um processo pelo qual se passa pode levar a uma grande variedade de reações patológicas. [voltar]

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