O Wândolo

Mariana era uma garota sem sorte. Era filha única e desde pequena acostumara-se a ouvir o pai dizendo que preferiria criar um filho. “Mulher é tudo igual. Só serve pra gente esquentar a cabeça…”, resmungava o velho. Ainda na infância, após muitas brincadeiras com o filho da vizinha, ela decidiu que seria médica quando crescesse. “Clínica geral”, dizia pro amiguinho, que, segundo seus desejos, seria seu futuro marido. Infelizmente, seis anos após terminar o segundo grau, ainda não lograra passar no vestibular. Chegou a ir à colação de grau do Marcelo — o filho da vizinha — que se formara em medicina e se preparava para especializar-se em ginecologia. Ele ficara tão bonito… Já Mariana, coitada, não tinha diploma algum nem o ex-futuro marido. Lembrava-se ainda quando, aos quinze anos, ele lhe dissera que não gostava de garotas branquelas e desengonçadas. E isto depois de praticar tantas vezes a futura especialização com a amiga. Tadinha da Mariana…

Notícia feliz: finalmente Mariana ingressou na universidade! Mas foi aprovada nos exames para estudar enfermagem. Fazer o quê? A vida não era assim mesmo? De qualquer jeito andaria vestida de branco. Se os vizinhos pensassem que fazia medicina, problema deles. Afinal, ela era incapaz de mentir e se lhe perguntassem, ela diria: “Enfermagem”. Se não perguntassem, ela não tinha nada com isso. Problema deles. Sim, problema deles…

O primeiro ano de estudo foi bastante agradável. Tinha muitas aulas em comum com os estudantes de medicina, o que muito a ajudou em sua auto-estima. Contudo, terminado o segundo ano, Mariana começou a sentir da parte daqueles futuros médicos um certo tom de “ponha-se no seu lugar”. Aquilo passou a desmotivá-la pouco a pouco. Agora andava triste pela casa. O pai preocupava-se: “Mulher só serve pra gente esquentar a cabeça…”, dizia entre dentes.

Mas a sorte parecia querer sorrir à pobre moça. Certo dia, andando pela Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, onde estudava, deparou com um pequeno cartaz no quadro de avisos, o qual oferecia uma bolsa de estudos a um estudante de enfermagem. As outras quatro bolsas eram para estudantes de medicina. Era sua chance de reaproximação. Mariana não pensou duas vezes. Sem sequer olhar de que se tratava o projeto de pesquisa, arrancou o cartaz e foi atrás da professora Denise, de quem, por sinal, assistira a algumas palestras no ano passado. Denise era uma médica com PhD, uma profissional extremamente conceituada. Os alunos a disputavam como orientadora.

“Então você quer participar da pesquisa?”, perguntou a professora.

“Quero demais!”, sorriu Mariana.

“O trabalho não vai ser fácil”, replicou Denise.

“Tudo bem, estou super disposta.”

A estudante foi aceita e o grupo fechado. E Mariana ficou entusiasmadíssima quando conheceu os outros quatro bolsistas. Todos homens, cada um mais bonito que o outro. Interessou-se muito por um deles, Fábio, o mais velho. E foi justamente este último quem manifestou a intenção de especializar-se em ginecologia. “Ai!”, suspirava a moça.

No princípio o trabalho foi tão pesado — Mariana virava a noite no hospital universitário — que a moça resolveu deixar a casa dos pais, na Ceilândia, e tentar uma vaga no alojamento estudantil. Assim economizaria o tempo despendido nos deslocamentos da satélite até o Plano Piloto. Seus pais não gostaram muito da idéia. Argumentaram que a Casa do Estudante ficava num lugar isolado, perigoso à noite e que, além de assaltos, até atos de vandalismo físico foram registrados ali nos arredores.

“Vandalismo físico?! Que idéia é essa, mamãe?”

“Tarados, minha filha, tarados…”

“Ora, mamãe, se diz es-tu-pro.”

“Pssiu… Não diga coisas de mau agouro!”

Ignorando as preocupações maternas, Mariana inscreveu-se no serviço de moradia para conseguir um apartamento vago. Para sua infelicidade, porém, o alojamento não aceitava estudantes oriundos do Distrito Federal. Dava prioridade aos estudantes de outros estados. Sem alternativa, a estudante mendigou uma vaga por sua própria conta e entrou no alojamento como clandestina. Mudou-se para um apartamento onde viviam outras três estudantes, muito sérias e distintas, que lhe pediram que tentasse regularizar sua situação o mais breve possível. Mariana, agradecida, concordou.

Passaram-se dois meses e a moça, que já se aborrecia terrivelmente com suas tarefas dentro do grupo de pesquisa, meteu-se num delicado incidente. Uma noite, antes de sair pra uma reunião, jantava sozinha no apartamento, quando Gabriel — namorado da única companheira de moradia que ainda defendia sua estada ali — apareceu. Ele fora jogar futebol no centro olímpico da universidade, pegou uma chuva e, como já estava gripado, correu para o alojamento, temendo uma piora do seu estado de saúde. Mariana fê-lo tirar a camiseta molhada e deitar-se. Era melhor não facilitar, disse-lhe. Sentou-se ao lado dele no sofá, onde estava deitado, e tocou-lhe a testa para verificar se estava febril. Sônia, namorada de Gabriel, entrou nesse instante. Foi um pega pra capar. Mariana tentava explicar-se contando a verdade, mas Sônia não a ouvia. Esta apenas gritava desaforos e a ameaçava dedurar pra administração do alojamento, se não saísse no dia seguinte. Mariana ainda tentou argumentar usando uma mentira inocente. Disse que já era comprometida, que seu colega de bolsa, o Fábio, era seu atual namorado e que jamais o trairia. Não adiantou, Sônia estava impossível. Gabriel, por seu turno, não balbuciava palavra. Sua expressão pouco inocente – na verdade nada inocente – não permitia que ajudasse Mariana, a qual, não vendo saída para o impasse, concordou em deixar a vaga no dia seguinte. Avisou que naquela mesma noite, porém, iria até a casa da orientadora, onde tinha um trabalho a fazer. A mudança ficaria pro dia seguinte.

Para melhor imaginar o estado de nervos da pobre Mariana, seria necessário conhecer a natureza das suas mais recentes atividades dentro do grupo de pesquisa. Depois de encerrada a coleta de dados junto aos pacientes do hospital universitário, Denise passou a valorizar apenas o trabalho dos alunos de medicina. A princípio, Mariana acreditou que deveria adequar-se àquele estado de coisas, afinal, não é realmente uma enfermeira quem dirige uma cirurgia. Mas quando a orientadora passou a utilizar sua disposição de trabalhar para que varresse a sala da sua casa, lavasse a sua roupa e a do seu filhinho, e para que fizesse cafezinho enquanto todos os outros bolsistas discutiam um assunto importante, Mariana enfezou-se. Não era uma diarista, era uma bolsista! Onde já se viu?! Resolveu informar-se e descobriu que o valor da sua bolsa equivalia a um terço do salário duma empregada doméstica ou a uma bolsa de couro minúscula da Calvin Klein. Aquela noite, ela passaria essa história a limpo.

Ao chegar no apartamento de Denise, mal teve tempo de articular um “a”. A professora depositou uma enorme pilha de papéis no seu colo e pediu-lhe amavelmente que a organizasse segundo os números das páginas. Mariana ficou sem reação com semelhante amabilidade e com tão grande calhamaço entre as mãos. Amansou-se. E, resignada, pôs mãos à obra.

Enquanto isto, Denise andava às pressas pra lá e pra cá, arrastando o filhinho de três anos pela mão. Parecia preocupada. Consultava o relógio com insistência. De súbito, estacou diante de Mariana:

“Querida, preciso sair pra resolver um problema. Será que você pode cuidar do Tiago pra mim?”

Mariana ficou muda. O garotinho a olhava divertido. Ela precisava dizer qualquer coisa.

“Bem…”

“Obrigada, querida. Eu volto daqui a uma hora.”

“Mas…” e interrompendo-se colocou a mão na testa. Suspirou: “Tudo bem, vou ter que ficar aqui mesmo.”

Até que o garoto não era arteiro. Na verdade, exigia pouca atenção. Mas Mariana começou a ficar intrigada com aqueles papéis. Estavam praticamente em ordem! Esta constatação fez-lhe o sangue subir à cabeça. Agora ela não passava de uma babá. Sim, era apenas uma reles babá… Logo ela, a moça que os antigos vizinhos criam ser uma futura médica. Isto não ficaria assim.

O telefone tocou:

“Alô? Mariana? Tudo bem com o Tiago?”

“Onde é que você tá, Denise?”

“Eu tô no shopping. Vou demorar um pouco mais. Vou no cinema.”

Mariana sentiu ganas de jogar Tiago pela janela. “Ai!”, suspirava, procurando-o com os olhos. O menino a encarou sorrindo, uma fofura. Coitado, ele não tinha culpa.

“Como? Mas eu já acabei, Denise. Preciso ir embora, já tá tarde”, replicou.

“Me faz esse favor, menina. Eu tô aqui com o Fábio, aquele rapagão lindo. Se você estivesse no meu lugar, eu te faria esse favor… E aí? Tudo bem?”

Mariana já não conseguia distinguir o certo do errado. Então aquela predadora estava com o Fábio entre as unhas? Tudo bem… tudo bem… Ela não perdia por esperar.

“Tá legal, Denise. Depois a gente se fala.”

“Valeu, menina!” e desligou.

Mariana iria embora. Levar o Tiago? Não, não… Precisava dar um jeito nele por ali mesmo. Não, nada radical, apenas inventar algo pra que ele, quando sozinho, não abrisse o berreiro. Não podia causar um trauma no garoto. Claro, perfeito! Era só arranjar um remédio pra fazê-lo dormir. Ela entendia destas coisas, não havia perigo. E, no entanto, após vasculhar todo o apartamento, nada encontrou. Denise é médica, sabe que todo remédio é mais veneno que propriamente remédio, não iria deixar nada assim à vista, pensou. E agora? Bater com algo na cabeça dele? Tiago sorria — tão fofinho… Não, não… Sim, já sei, o vizinho, é a única solução. Levantou-se.

“Será que eu posso deixar o filho da Denise com vocês?”

“Claro, será um prazer”, disse o homem, afável.

Mariana saiu apressada. Aquela mulher…, pensava. Ela ia ver uma coisa. E chega de alojamento! Chega de trabalho forçado! Pelo menos ela se livrara do Tiago. Caso contrário, não sabia o que teria sido capaz de fazer.

Andava de cabeça baixa, pensando em coisas pesadas. Como Denise morava na Asa Norte, teria pouco mais que vinte minutos de caminhada. Assim teria tempo pra desopilar o fígado e chegar mais calma em casa.

Já no campus, quando Mariana se preparava para atravessar as últimas vias antes do alojamento, um carro desconhecido aproximou-se e parou. A moça ficou paralisada. O medo não a deixava recuar, o carro não a deixava avançar. Àquela hora da noite, boa coisa não seria. Devia dar mais ouvidos aos pais, pensou com pesar. De dentro do carro, ouvia-se o rádio: “Eu quero me embolar nos seus cabelos/ Abraçar seu corpo inteiro…”

“Por favor…”, disse um homem saindo do carro.

Mariana deu um passo pra trás:

“Vai embora, senão eu grito!”

“Calma, eu só quero pedir uma informação…”, e avançou, entrando sob a luz do poste.

“Pode falar daí mesmo…”

Ele sorriu e só então Mariana percebeu que aquele era o homem mais lindo que já vira em toda a vida. Muito mais bonito que o antigo amiguinho de infância ou que Fábio. E que sorriso! Esta visão a desarmou. O rádio prosseguia: “Morrer de amor, de amor me perder…”

“Eu só queria saber como faço pra chegar no Lago Norte”, disse ele.

Mariana aproximou-se:

“É só você seguir essa via até a ponte. Sempre em frente.”

“Tira a roupa!!”, bradou subitamente o homem.

“O quê?!!”, murmurou Mariana, vendo ruir seu mais recente castelo.

O homem sacou um revólver da cintura:

“Tira a roupa! Agora! E nada de escândalo.”

Mariana perdeu naquele momento qualquer esperança que pudesse lhe restar quanto à sua sorte. Era evidentemente uma desgraçada. Sua vida idiota não era senão uma seqüência de sonhos tombados, qual fileira de dominós. Se tinha que ser estuprada que pelo menos o fosse por aquele homem bonito.

Tirou, então, a roupa com a mesma naturalidade que se despia para o banho. Parecia despir-se também da alma, para não maculá-la. Estava inconsolável. Como era possível? Tão bonito…

O homem estava impaciente:

“Rápido, moça!”, e brandiu o revólver.

Ela juntou seus trajes e os depositou na calçada, deitando-se em seguida com as pernas abertas. As roupas ficaram entre seus joelhos. Se seu mundo tinha que acabar, que acabasse logo…

“Eu quero, eu quero, eu querôoo…”, continuava o rádio.

O homem aproximou-se e Mariana, respirando fundo, fechou os olhos. Sentiu quando ele se ajoelhou entre suas pernas — e ela esperou… esperou… esperou…

“Mas o que é isso?”, pensou, abrindo os olhos.

O homem já estava a alguns passos, próximo do carro e, enquanto cheirava a calcinha que furtara dela, observava-a com uma mão dentro da própria calça.

“Você é louco, é? Seu depravado!”, e, envergonhada, começou a recolher suas coisas.

O homem deu uma risada seca, colocou a calcinha roubada no bolso, entrou no carro. E logo afastou-se, a toda velocidade, levando a música embora.

Mariana jamais se esqueceu daquela última noite em seu antigo apartamento do alojamento estudantil. Uma terrível noite de insônia. Noite infinita, não se esquecia do que Denise lhe fizera e tampouco das risadas daquele tarado miserável. “Ah!”, suspirava, “e como ele era maravilhoso…” A pobre moça não tinha sequer o consolo de saber que deixara o filho de Denise com um ex-condenado por pedofilia e abuso sexual. Coitada da Mariana, era mesmo uma garota muito, muito sem sorte…
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Este conto faz parte do livro A Tragicomédia Acadêmica – Contos Imediatos do Terceiro Grau.

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