Genus irritabile vatum

“olha só, tio, esse aí não é o…”

“quieto, Gabriel, apenas observe”

puta merda, acho que tá todo mundo me sacaneando. os caras não aparecem, a bosta do MD não bate. “toma antes de sair, assim você chega na festa quando a onda bater”, disse a besta do João. aposto que é falsa essa droga. maizena. pura anfeta. também era só o que me faltava, perder logo a rave de hoje. não agüento mais só ficar lendo, sem conseguir escrever, sem arranjar mais um frila sequer, nessa miséria, pulando ora desse ora daquele apê pra casa dos meus pais – ou pior, pra casa da Aline –, sem um puto. foda. muito foda.

“cê não ia sair, filho?”

“vou, vou, tô esperando o Sérgio”

meu pai. olha só o coitado: sentadão aí na sala, cochilando na frente desse seriado americano pasteurizado. Deus me livre trabalhar trinta anos, me aposentar e ficar nessa, tipo Beaves e Butthead idoso. é tudo uma grande merda mesmo, um cocozão cósmico. os cátaros devem ter razão, este mundo foi criado pelo demo. “deus não se revela no mundo”, escreveu o louco do wittgenstein. e olha só, o filme é tão ruim que o cara, o meu pai, que é um puta pai, taí, quase babando. sacanagem. o cara trabalhou pra caralho, ajudou mil neguinhos e olha só como a sociedade o recompensa: mil propagandas de TV. sem falar que ele investiu uma puta grana em mim e eu necas, um bostão inútil. escritor escritor. escritor o caralho! que livro que eu escrevi? aquela besteira cheia de poeminhas adolescentes? aqueles contos que nem consigo publicar? vômito de bêbado

“que qui cê tá fazendo aí parado, olhando pra mim?”

“eu?!”

“não, a minha sombra”

“eu vou lá beber água, pai. quer?”

“não, brigado”

caramba, já tô dando bandeira. só faltava mesmo o negócio bater aqui em casa. se rolar, fudeu, vai ser pior do que tudo. será que meu pai sacou? nossa!, imagina, nem pensar. tá todo mundo aqui: vó, cachorro, papagaio… :-( puta roubada, meu! deve ser só adrena. sempre dá um nervoso tomar um troço desses. igual pular de pára-quedas, o famigerado salto no abismo e tal… bom, de qualquer jeito os caras precisam passar por aqui. a represa Billings é aqui ao lado, nessa mesma bosta de zona sul… e o viado do João ainda teve a manha de me falar que essa coisa levava mais de uma hora pra bater! alta sacanagem… nossa, que que eu vim fazer aqui mesmo?

“Ju, me passa esse vidro de azeitonas aí do teu lado”

a água, é isso, vim beber um pouco d’água. nunca me lembro de beber. a água da vida. deve ser por isso que mijo amarelo pra caramba, uma coisa forte, como se eu comesse enxofre. o demo não deve beber água. a da vida, claro. as coisas que eu me lembro… uma vez eu dei aquele remédio pra uretrite, como chama? é, isso, o Sepurim… dei pro Jáder dizendo que era pra dor de cabeça, só pra ele mijar verde e o cara-

“Ju? tá de mal de mim, é?”

“o quê??”

“tá preocupado com alguma coisa? tá com uma cara…”

“é o Sérgio que não aparece logo, Carlinha”

“você tá cansado de saber que o Sérgio é embaçado. agora vai, me passa a azeitona”

“cadê a mamãe?”

“foi tomar banho… tá lembrado que o Luís vem assistir um filme aqui hoje, né?”

“qual filme?”

“Apocalipse Now”

meu Deus, não posso esquecer: ficar bem longe da televisão! o Sérgio tem que chegar, já tô com o maxilar estalando, a boca seca. que horas são? (relógio de plástico na parede com propaganda de empresa) meia noite e meia??! e ainda tá todo mundo ligadão por aqui?! será que esse relógio não tá adiantado? por que o Luís não se limita a consertar o computador do meu pai? precisa ficar trazendo filme todo sábado à noite? por que não traz domingo à tarde? o velho já tá até dormindo no sofá… nossa, que angústia tá me dando. uma aflição! parece até que tô numa trincheira, esperando um tiro… sempre que tomo essas porcarias me arrependo em seguida. sempre a tal “morte iminente”, essa sensação escrota. deve ser falta de memória. se eu realmente assimilasse a experiência, lembraria que o lance é muito, muito, muito foda. olha só, olha os dentes trincando

“nossa, Ju, cê já deve ter tomado dois litros de água”

“eu?”

“é, olha só, quase secou o filtro. tava no deserto por acaso?”

é, vou pro meu quarto. lá sim é deserto, não vou dar bandeira nem pagar nenhum mico. puta que o pariu! meus pés nem tocam mais o chão, tô flutuando. que cheiro forte será esse? cheiro de flor de velório. credo. a porra tá batendo mesmo. por que sou tão azarado assim? que saco, Deus do céu, ¿não foi com a minha cara não, é? minha tia disse que eu nasci feio pra burro, que nem acreditou que eu era filho dos meus pais. eu parecia um sapo roxo, inchado, com as narinas feito dois funis. horrível mesmo eu devia ser, um bebê de Rosemary misturado com Macunaíma. opa!

“iiih, nem saiu pra festa e já tá bêbado?” (o pai no sofá da sala)

“hã? não, eu tropecei no degrau, só isso”

pro quarto, pro quarto. (sobe a escada, cuidadosamente, apoiado no corrimão) eu já tinha prometido pra mim mesmo que nunca mais ia fazer isso. daquela vez tomei uma mescalina que levou mais de duas horas pra bater. pelo menos era de manhã, fiquei enrolando no jardim um tempão. mas foram treze horas de piração!!! que pareceram dois milênios… foi muito céu e inferno pra uma cabeça só. MD não pode ser assim. Deus me livre. chega logo, Sérgio, seu filho da puta!… e aquela vez naquele club, o Alien? tomamos um doce que só bateu quando a gente tava saindo de manhã. eu e o Sérgio num passeio matutino. cada um com mais cara de vampiro que o outro. os prédios da Brigadeiro se inclinavam pra cima da gente, parecia que a cidade ia nos engolir. e o cara: “nossa! vamos entrar nessa feira, olha só como tá tudo bonito, luminoso…” que saco, tive que arrastar o cara dali debaixo do viaduto da Treze de Maio, onde rola a feira. ele ficava perguntando pra japonesa: “esse pimentão é de verdade?” que puta bandeira aquilo. A japonesa cheia de mesuras, um sorriso diplomático, enquanto procurava uma autoridade com o canto dos olhos. depois a padaria: “meu! olha só a luz nesse pão de queijo…” e os velhinhos madrugadeiros encarando a gente, desconfiados. fotógrafo é foda. devia ser a mesma coisa andar com o Van Gogh. por isso ele ficou sozinho. só babando na beleza das coisas, dos corvos, dos cocôs de cachorro, dos carrapatos brilhando ao sol. depois, ao sair da padaria, a gente não pôde ir pra casa. tanto na minha como na dele teria sido terrível. vó e papagaio. fingir que não está louco é interiormente equivalente a não berrar durante uma cirurgia dentária sem anestesia. e a gente ainda nem dividia apartamento. deve ter sido em 96 ou 97… só sei que acabamos no cemitério do Morumbi, procurando o Ayrton Senna. aquele gramadão… dois enterros… um velório… o cheiro das flores não incomodava como agora. foi gostoso pra caralho. hiper tranqüilo. rimos. conversamos sobre a infância, os carrinhos de rolemã. lemos os nomes nas placas de bronze. ele até me contou por que me chama de “irmão alemão”: uma clarividente lhe disse que uma pessoa muito próxima dele fora, noutra encarnação, seu melhor amigo na Alemanha… deliramos deliramos. ninguém sacou nossa viagem. mesmo que tivéssemos chorado, feito escândalo, teria sido normal num cemitério. lá fora São Paulo, numa somatória de máquinas, fazia RÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔ

“qué isso, Ju?! tá louco, é? quer me matar de susto?”

“desculpa, Tati, desculpa”

“pôrra, eu já tava quase terminando a fase, você vem e dá esse berro na minha orelha! aí, tá vendo, perdi…”

“desculpa”

(corre e bate a porta)

agora sim, trancado no quarto. ainda dá pra ouvir a Tati na sala, a musiquinha do Sonic. aposto que vai jogar de novo. a gente tá sempre inventando alguma coisa pra espantar o agora, o irremediável instante. meu pai na sala de baixo assistindo a uma bobagem qualquer de Hollywood, a Tati aí, no vídeo-game, matando o tempo travestido de porco espinho ou seja lá que diabo for esse Sonic. o tempo é realmente porco e espinhoso. quem foi mesmo que disse “matamos o tempo, o tempo nos enterra”? não me lembro, a Tati fic- ah, não, que droga! (põe uma mão na cabeça) a Tati sacou que eu tô louco! fudeu! ela disse “¿tá louco, é?”, tenho certeza. e eu ainda bati a porta em seguida! puts, vai contar pra mãe… ai, meu maxilar! meus dentes tão trincando. uma tremedeira. a carne viva da consciência. tudo é pontiagudo, sentir é bambu sob a unha. respirar é farpa no pulmão. que agonia. aliás, que burrice, né, ô Meu? sei sei, tenho que manter a coluna reta, assim, e respirar com o diafragma. que medo, cara, ¿e se alguém procurar saber como é que eu tô? vou tomar banho vou tomar banho, do boxe ninguém me tira. pelo menos aqui é suíte… (tropeça no tapete) saco, tô naquela fase de ter que ficar ligado em tudo senão faço besteira. muito trabalhoso. a roupa. tirar a roupa… nossa!, os azulejos já tão se mexendo, líquidos, gráficos, fluídicos. bateu mesmo. e o Sérgio necas. (entra no boxe) pronto. água quente. tchau, frio do cão. preciso comprar outra estrobo pro meu banheiro. aquela luz piscante deixa a água parada no ar, gotas redondas e não em forma de gotas. ah, vou acender uma vela. na gaveta, na gaveta tem. (volta pro quarto) … aqui. droga, tô molhando tudo. bostona… (corre pro banheiro) saco, não posso deixar o mal-estar chegar. é só uma agüinha no chão, na gaveta, porra, deixa de ser besta. luz luz. pronto. assim. luz amarela. e penumbra. o som o som. (aperta o play) nossa, The End? quem pegou meu CD do Goldie? aquele, o Timeless? ah, fuck. melhor não grilar com água, com CD, com nada… droga!! não consigo. se tem uma coisa que me irrita é essa coisa de me irritar porque estou irritado. oroboro da ira. orobira, orobirra. nossa, uma pressão no peito. deu até zonzeira… e é tudo tão bonito. os mosaicos sempre aparecem. tapetes persas cobrem tudo. tudo vivo, no ritmo. será que foi mesmo o demo que criou o mundo? os cátaros eram estranhos… e agora democracia versus diabocracia. a religião voltando dum jeito assustador. fundamentalismo. bem que o Spengler avisou que no final de uma cultura vem um resgate da religião original: aqui, cristianismo. tipo último suspiro. zen, taoísmo, budismo, hinduísmo, islamismo: aqui, não passam de moda. pra lá, já são outros quinhentos… depois a revolta dos braços contra as cabeças. a cabeça muito longe pra sentir as dores dos membros, os membros esquecendo a importância da cabeça: revolução. no Brasil tudo chega tarde. quando Judas chegou por aqui nem tinha mais botas… Kali-Yuga no mundo, nessas beiradas de universo. a invasão dos migrantes, dos estrangeiros, as periferias gigantescas, a miséria a fome a violência os manos os sem-pátria os sem-terra os sem-vida… parece que isso tudo já rolou alguma vez. é como se eu estivesse numa cidade do Império Romano, Inca, Mongol, sei lá. meu Deus, como a sensação é real! pro Emil Ludwig quem derrubou o Império Romano foi a corrupção e a escravatura. e o Grande Império Ocidental, quem derrubará? a exclusão e a corrupção véia de guerra? caralho, que sensação esquisita. é como se eu já tivesse assistido a tudo isto várias vezes. nada mudou, replay, mundo vídeo-game… ah, vontade de me encolher, esquecer de tudo de todos, do planeta inteiro. tanta gente no mundo que fico doente só de pensar. (acompanha a música) my only friend, the end… (deita-se) assim, no chão, feito feto. não quero mais pensar nessas coisas, tá doendo. dores no corpo, cansaço. e se meu coração parar?? uma taquicardia! ai, que nóia… por que tomei de novo? eterno retorno do diabo. meu e do mundo. a gente não aprende, não apreende. que vírus mental essa coisa química! preciso parar de pensar, de passar mal… será que vai tudo acabar de novo? será que nós nunca vamos pra frente? talvez seja porque… ai! não agüento essa maldita palavra: porque! junto ou separado. por quê? saco, sinto mil merdas, mil medas… que tremedeira! que mal estar! sinto um… sinto… ah, quer saber?, eu sinto, sim, eu sinto, pai, sinto, mãe, queridas irmãs, caros colegas, senhoras e senhores, sinto finalmente o horror… o horror de SER!! (arregala os olhos)8-* que susto! quase fiquei louco! quase caí do fio da navalha… caralho, isso não pode rolar, posso ser banido. por um instante eu não era eu! que susto!! deitar um pouco, deitar um porco. (gargalhadas) nossa! (tapando a própria boca) tenho que parar, alguém vai ouvir, vai perceber, vai surpreender minha mente vagabunda, minha vagamente, vai pen- …………. (encolhe-se repentinamente) ………… (tosse) …… vai pensar- …… (silêncio) … }-O … ah, sinto o… sinto tudo. sim, tô tudo: eu tu ele nós vós eles: tudo … eu crio … }-0 … eu, oroboro …… ele vem e passa todo por dentro de mim, o tempo-espaço … ride the snake… eu que não resisto à minha própria gravidade… colapso. eu co-lapso. eu funil, cobra que se engole … sengole… singularidade …. ?????????? 8-O ???????????? 8-# !!!!!!!!!!!!!!!!!!! há vida, há vida !!!!!!!!!!!!!!!!!!! 8-) …… :-) ….. ah … vou morr- … humff ….. >-( …….. !!!!!!!!!!!! ………… (convulsão, escuridão, estrelas)……… |-} |-} ……. (minutos)

“Julianôôô, vai ver o filme?”

(pausa)

“ô, Juuuuu”

“deixa ele, deve tá tomando banho”

“de novo? ele não ia sair?”

“ia, mas cê conhece o Sérgio, né”

(Juliano senta-se na cama, atordoado) nossa! que horas são? preciso me levantar, já deve ser quase hora do almoço. nossa, tô tão ligado. depois escovo o dente. uma preguiça… (levanta-se) engraçado será que é madrugada? tá escuro… (tenta abrir a porta mas a mão passa através da maçaneta) meu Deus!! 8-0 que qui tá rolando???? (insiste sem sucesso) o que é iss- epa! (senta-se no chão do boxe, o chuveiro ligado, já não há som do CD) ai, meu maxilar tá trincando… meus ossos… tem um torno apertando minha cabeça. água! água!… ¿mas como se eu tava agora mesmo tentando sair do quarto? (fecha o chuveiro) meu Deus, isso é muito perigoso, não posso mais tomar isso. me lembra aquela história babaca que minha mãe ouviu o Gil Gomes contar no rádio nos anos setenta: o filho cheirou, o pai chegou, ele pensou que o pai era um monstro e o matou a facadas. puts! melhor nem pensar… já tô tendo até alucinação, meu pai do céu, isso nunca tinha acontecido antes. tenho certeza que eu tava agorinha no quarto, deitado de short e camiseta. e eu achei que tinha acabado de acordar! ….. não sinto as pernas direito. que medo. esse barulho lá fora. que será? nossa, tudo tridimensional! … 8-( … claro, né, ô palhaço, mas é como se eu estivesse vendo isso pela primeira vez. esse corpo não parece meu. (olha as mãos) mil mosaicos… veias estrias estradas do meu corpo do meu porco mercúrio líquido… não consigo respirar, não consigo não consigo vou desmaiar vou desmaiar ………(deita-se rapidamente, põe as pernas sobre o vaso sanitário) :-( não devia não devia ter tomado, preciso de alguém, tô muito sozinho, muito muito muito só, eu, o último dos merdas… (encolhe-se novamente) droga… droga… (chora) cadê a Aline? eu precisava tanto dela agora… desgraçada… sozinha lá na praia, me esperando em Trancoso… até me mandou uma passagem, imagina… sinto uma falta tão grande… de alguém… de algo… uma falta de mão no saco! (segura o saco. dá gargalhadas) a Aline segurando meu saco seria tão reconfortante! (abafa as gargalhadas com as mãos) tenho que parar tenho que parar, acho que não vou voltar, não vou, vão me ouvir e saber que finalmente perdi o controle… 8-| … fui muito longe, exagerei, queimei meu cérebro, enlouqueci, chorando abracei o cavalo… o cavalo da minha alma, essa filha duma égua… (apavorado) minha mão passou através da porta! eu me lembro! me lembro! os pais do Tiago levaram ele pro hospital psiquiátrico uma vez. isso não pode acontecer comigo, não pode. eu posso não conseguir mais sair de lá, não encarar mais ninguém. tô tremendo tanto! meus dentes tão batendo. vão acabar ouvindo meus dentes batendo. tão alto. será que vão ouvir? ¿que som é esse? parecem bombas, tiros. será a revolução?? sou amigo dos manos, não pode rolar nada. fala com eles Mano Brown, fala, não sou como os outros… devo ser pior, um inútil, imagina: um es-cri-tor… até parece… já foi tudo escrito, tudo… nada mais a dizer… nada a acrescentar. nada a declarar! sem comentários! fale com o meu advogado! (gargalhadas, lágrimas) vida sem sentido sem sentido sem sentido, mundo besta… são todos tão bestas que me dá medo. (arregala os olhos, assustado) esse barulho! sim, já sabem que pirei, já sabem. tudo tão igual e tão diferente. puts! tão tentando entrar! (levanta-se e corre pro quarto, ainda molhado) tenho que me esconder. (entra no armário) vou ficar aqui até eles desistirem, até eu parar de tremer… (fecha a porta por dentro) medo medo medo. pra ser escritor “carece de ter a muita coragem”… “viver é muito perigoso”… meu tio me chamava de “tatarana”… eu tinha uma penugem nas costas… (soluça) cadê a coragem? cadê?? medo é frio na alma, só pode ser. tanto frio num dia tão quente, que vergonha. não posso ir pro sanatório não posso, eu… eu …… >-( …… ai, cacête! uma falta de ar escrota. tô com medo de morrer!! um medo enorme!!! isso tá errado, ¿que droga é essa? isso não é MD, tenho certeza. sensação difícil de suportar, esmagadora… um branco, tudo branco, uma página em branco gigante caindo na minha cabeça… estou soterrado de vazio, de nada, de branco. escritor, eu… escritor foi Shakespeare, isso sim. ele foi tão magnífico que conhecendo todos ninguém hoje sabe ao certo quem ele foi. depois foram tantos: Cervantes Swift Milton Blake Goethe… Tolstoi Dostoievsky Nietzsche… Poe Hesse Papini Joyce Tchecov, tantos, tantos: Gide Clarice Rosa Rimbaud Machado Borges Abbelio… Hilst Pessoa Baudelaire Beckett Faulkner Jünger Anaïs Bulgakov Pynchon Lory Huxley Raduan… tantos tantos… e nem li todos, que vergonha, fico me exibindo pra mim mesmo. há outros. não consigo me lembrar… (bate repetidamente a cabeça no armário) e eu, em pleno ano dois mil? quem sou eu? por que nasci tão tarde? por que demônio das profundas? por que Rei do Mundo?… 8-< … o frio again… Shakespeare conhecia todos. o Henry Miller só falava de si mesmo. como se fossem dois pontos de inflexão na literatura ocidental: um no ápice, outro na decadência. um rebuscado, outro vomitado. um de fora, outro de dentro do ego. do começo ninguém tem uma conclusão. e eu…… eu…… eu mais sem qualidades do que sonhaste, caro Musil, eu jamais grande escritor, eu incapaz de montar a propaganda, esse cavalo do século… eu barata kafkiana de armário, não bharata sânscrita, que se traduz poeta, eu aquela outra, vencida pela naftalina acachapante deste mundo informatizado… eu sem dono de Tabacaria que me salve da loucura, eu que sequer fumo… eu esqueleto desse armário, meu próprio anão nele escondido, Dunga com medo da alta folha branca de neve, oculto anão das letras… dizer “eu” é tão ridículo, tão sem sentido… qual o meu significado? qual?? eu eu eu eu eu eu eu… viu? não disse nada. o torno de novo! tá me apertando! tô tremendo demais! minha cabeça, acho que vou pedir socorro… que vergonha. mas é esmagador! não consigo evitar, não consigo, minha mediocridade, minha inutilidade me mata, existir me sufoca. esse cheiro de velório, de onde virá? a primavera chegou? a prima Vera vem aí? (risos nervosos) tão gostosa, aquele cheiro de bu… meu Deus, não consigo respirar… >-o … (sai rapidamente do armário. desaba)

“não disse que seu pai não ia agüentar? aí, já tá dormindo”

(Tati e Ana dão risada. Luís finge que não ouviu)

nossa, eu também dei uma cochilada. que filme é esse mesmo? ah, taí o surfista pirado, é Apocalipse Now. puta filme esse. esse cara toma um ácido em plena guerra do Vietnã! imagina só a viagem. ele pira tanto que fica parecendo o único são. claro, em termos de desenho animado. vai e não volta. e o Marlon Brando! demiurgo da selva, o mal encarnado… e ainda tem aquele general louco impagável, surfista também, imune a bombas e tiros… ou pelo menos é tão megalômano e poderoso que não vê nada a não ser ondas e alvos. qual é mesmo o nome do ator? ele atuou e dirigiu aquele filme pentelho em que fica dizendo “aleluia” e “Jesus” o tempo todo… isso, O Apóstolo. mas qual é mesmo o nome dele?

“mãe, qual é mesmo o nome daquele ator que falava ‘djísus’ o tempo todo?”

(ninguém responde. Juliano ri)

“ôôu! ¿alguém? ¿alguém? ¿alguém?”

(nada. Juliano estica o braço, tenta tocar o ombro da mãe. a mão a atravessa)

não acredito não acredito. qu’é isso??…. :-0 …. ai, meu Deus do céu, tô me lembrando: eu tava agorinha escondido no armário e…….. eu morri!!! tô morto, só pode ser. que nem aquele filme, Uma Simples Formalidade! que nem o Sexto-sentido! João filho da puta: aquilo era veneno! o cara me matou!! o que é que eu fiz pra ele?? meu quarto, eu tenho que- não, não, tenho medo de ver meu corpo

“você não morreu não, bestão”

“quieto, Gabriel!”

eu ouvi! eu ouvi! falaram comigo. (pula em cima da mãe, apavorado) mãe, pelo amor de Deus, me ouve: vai no meu quarto, eu não fui dormir não, eu tô passando mal, me ajuda mãe (tenta abraçá-la sem sucesso. é como se tocasse um holograma) ¿será que vocês tão brincando comigo?? o que é que tá rolando? socorro, caramba!!… (chora) eu não posso morrer agora, simplesmente não posso… (ajoelha-se diante da mãe) mãe, pelo amor de Deus, cara, entra agora nesse quarto, tá rolando alguma coisa que eu não entendo, acho que tô maluco, a morte não pode ser assim, não pode… (sons de tiro: Juliano levanta-se apreensivo) de onde veio esse barulho? foi o filme? parece que é lá fora… será? (vai até a janela) … 8-O … começou!!! meu… meu Deus!! a bandidagem tá caindo de pau no bairro, é o caos. nossa, tão pulando aqui dentro, tão na garagem, muita muita gente… apocalipse now!! no ano dois mil! em pleno ano dois mil! deve ser no mundo inteiro! pogrom! defenestração! vão matar todo mundo, todo mundo. eu ouvi, eu ouvi isso num filme, no Antes da Chuva, “não existe um povo pacífico”, não existe, pra tudo um limite… a gente tem que fugir! a gente tem que fugir! a gente não tem culpa… (vira-se pra família) uê!! cadê todo mundo? mãe?? Ana??? (a sala está vazia. na TV, a escada de um templo abandonado cheio de cabeças. Juliano corre pelos quartos, desce a escada) pai!! cadê vocês, merda?! e esse monte de sangue no chão??? o que qui tá acontecendo? tá tudo ensangüentado!! o teto. o chão. eles não podem ter matado vocês, não podem. (desesperado, os olhos marejados) feliz ano novo, Ruben Fonseca! feliz ano 2000, Juliano! bem-vindo à morte como ela é… (vários vultos passam correndo diante da janela da sala) foram eles! foram eles! (cai de joelhos, esconde-se atrás do sofá) não agüento mais isso! e se eles estiverem atrás de mim? que medo, não agüento, alguém me diz o que tá rolando…

(garoto engrossando a voz) “pezinho pra frente, pezinho pra trás”

“silêncio, Gabriel!”

não me leva! por favor, não me leva!

“Julianôô ! telefone pra você, ¿cê tá dormindo?”

(abre os olhos, assustado) nossa, será que eu desmaiei? (levanta-se em seu quarto, diante da porta aberta do armário)

“Juliano?”

“fala!”

“telefone pra você, é o Fran”

“já vou, Carlinha, já vou”

minha mãe do céu, meu corpo tá formigando inteiro… que tremedeira do inferno… (põe a roupa e de repente estaca) caramba, eu entendi! agora eu entendi! aconteceu o futuro! eu me lembro!! foi uma visão!!! … 8-) … mas que escritor coisíssima nenhuma, eu sou o gatilho! … 8-] … é tão óbvio, minha vida inteira pra chegar a isso: eu começarei o fim do mundo! The End, que sincronicidade! é claro: eu sou o universo, entrou tudo em mim, tudo tudo, eu saquei, tudo o que vejo é projeção da minha mente, eu crio tudo. olha, ainda tão todos lá assistindo ao filme, todos… o que vi foi o futuro! li tanto tanto pra só agora perceber que não era necessário: tudo vem de mim! eu sou a Matriz, eu sou o Deus Supremo!!! por isso todas as mensagens que fui encontrando em minha vida, nos livros, nos filmes… tudo agora faz sentido! e eu querendo ser um simples, um estúpido escritor… eu que não era tomado por nenhum grande tema como queria o Ernesto Sábato… eu, a própria fonte de tudo… >-) como eu não percebi isto antes? tão na cara…

“ô, Ju! não vou mais chamar, hem, a gente tá indo dormir”

por isso o meu amor e a minha vontade de destruir o mundo. eu só desejo começar tudo de novo, como a fênix. sempre foi assim: eu inicio, o homem se atrapalha com o Tempo e cai no eterno retorno. ele não percebe que só merece a vida quem ascender a espiral do Tempo. o eterno retorno é erro, é pensar que eternidade é duração linear, e não atemporalidade, ausência de Tempo, permanência. o espaço – que é tempo atualizado – se curva sobre si mesmo: oroboro, eterno retorno. o avião cruza os céus porque tá tão apoiado no ar que é como se este fosse sólido, como se fosse outra coisa. assim deve ser seguido o Tempo, tão agora, tão nele, como se fosse outra coisa, como se fosse sua ausência. o Wittgenstein, o Witt, ele disse: viver eternamente é viver no presente. civilizações nascem e morrem porque não percebem isso. os humanos tão sempre partindo da estaca zero, sempre achando que são os mais isto, os mais aquilo, que estão no auge da sua evolução e, idiotas, vivem repetindo as mesmas coisas, os mesmos erros. querendo dominar… a Atlântida é agora! a eternidade é hoje ou nunca! corrupção e escravatura, Emil Ludwig?? não!!! eu sou o destruidor…

“vou dizer que você tá cagando!”

opa!

“já vou, já vou”

(abre a porta. o filme acaba de ser rebobinado. atende ao telefone)

“Ju? o Sérgio ainda não apareceu?”

“quem tá falando?”

“é o Fran, cara”

“ainda não, mas não tem problema, Fran, vou dar um jeito…”

“você vai pegar o carro?”

“não, desisti de ir, descobri umas coisas…”

“algum dji-djei não vai tocar?”

“tchau, Fran, até um dia”

“puts, cara, ¿até um dia? parece até que cê tá doidão…”

“não, meu filho, nunca estive tão lúcido em toda a minha vida”

“iiih… ¿meu filho??” (risadas) “tá viajando…”

(Juliano desliga)

não posso contar a ninguém quem eu realmente sou. são todos tão ignorantes que ririam da minha cara. eu te perdôo, mundo. mas infelizmente terei que encerrar mais esta tentativa. as coisas fugiram ao controle. não dá mais. vou dar o grande aviso. nesta manhã, quando olharem pro céu, todos lerão em letras holográfico-garrafais: GAME OVER!!! (gargalhadas)

“ih, Ju, qual foi a piada que o Fran te contou dessa vez?”

“NÃO INTERESSA”

“credo, meu, que grosso. vai rir no teu quarto senão cê vai acordar a casa toda” (Carlinha fecha-se em seu quarto)

e eu que não sabia se a Aline era ou não a mulher da minha vida… que besteira! como se eu já não me bastasse. é incrível! como tudo é tão claro agora. tudo tão belo e cheio de detalhes. as paredes, cheias de caras, de rostos, me olhando, admirando seu Criador. veja, Juliano: quantas mãos saem da parede para lhe tocar, para tocar o seu Senhor. amo vocês, toda a matéria, toda a energia, todo o espírito. e é por amor que darei um basta a tudo, a todo erro, a toda estupidez. tão claro… se o universo vem de mim, se minha essência é eterna, eu, o Brahma, só tenho que liquidar com minha própria manifestação física, tenho que me sacrificar, é lógico. assim, todo o processo se iniciará, tudo o que vi se atualizará, será real. será muito sofrimento para todos, mas isto os purificará de tanta ignorância e maldade. 8-] minha morte será um buraco negro do qual ninguém escapará, eu, Hercólobus, purgarei o mundo de toda iniqüidade…

“tio Fad, por que ele tá com essa cara engraçada?”

“pssiu!”

eu sinto os anjos ao meu redor. logo eu que nunca acreditei neles os ouço agora. vieram prestar suas homenagens, eu sei. meus queridos, abençoem o planeta em meu nome, transmita a todos o meu amor, o meu perdão… eu, Shiva, conduzirei a humanidade à extinção, à absorção total em Brahma, ao Brahma-nirvâna…

“ih, o cara tá assim porque tá pensando em cerveja e no Kurt Kobain??”

“Gabriel!”

como fazer, anjo Gabriel? como agir? me jogar de cabeça janela abaixo? me enforcar?

Tio Fad: “caminho do meio, Shiva…”

sim, claro, não há estética numa cabeça arrebentada. muito menos num corpo roxo, numa língua dependurada. isso tudo seria um extremismo… o que fazer então?… 8-|… mas tá na cara! é isto! Kurt Kobain: o revólver do meu pai. um tiro no coração e fim. depois basta limpar o sangue e ficarei bonitinho no caixão… tão simples… à arma! à arma! tenho de encontrá-la… ( abre a porta do quarto dos pais e começa a remexer nas gavetas)

“qué isso? quem taí??”

“sou eu, mãe”

“meu filho, você já viu que horas são? o que é que cê tá procurando a essa hora?”

“procurando? tô procurando nada não…”

“se quiser dinheiro por que não pede? se teu pai acorda e te vê fuçando nas coisas dele vai ficar zangado…”

“eu queria minha passagem de avião… pra reservar o vôo…”

“uê! decidiu ir hoje? assim de repente?”

“é…”

“então olha lá embaixo, na sala de TV. acho que tá num envelope azul…”

“tá”

(e sai, o coldre de um 32 na mão esquerda)

caramba, o coldre tá vazio. onde será que meu pai guardou o revólver?… será que ele aderiu a esse tal programa de desarmamento? não, não. ele mesmo me disse: “isso é uma grande besteira, a violência tá é dentro de cada um e não de fora, numa arma. se a sociedade fosse desarmada, logo logo leríamos notícias de gente morta à paulada, pedrada, porrada, cacetada e o diabo. isso tudo é uma invenção do totalitarismo mundial que vem por aí… além disso, só um idiota pensa que os bandidos não teriam onde conseguir armas. uma revolução então, nem se fala…” mas onde diabos se meteu então a porra do revólver?? … :-{ … puts! é claro, elementar, meu caro Shiva… (sorri) só pode tá no quarto da minha avó! ¿ela não ficou preocupadíssima quando meu pai faliu e o sócio se mandou pros esteites? claro, ela o escondeu com medo de que o filho fizesse uma besteira consigo ou com o sócio fujão! eu ouvi algum blablablá desse tipo entre ela e minha mãe… (abre a porta do quarto da avó, entra a passos de ninja) ela não vai acordar, dorme que nem coma profundo… (revista as gavetas da cômoda, o armário) caramba, onde tá essa merda?… (encontra e desembrulha uma calçola enorme) achei! achei! eu sabia, eu sei tudo, tudo!!

“Jacinto, mostra ele pra mim de novo?”

ai ai ai, sonho erótico de viúva véia. preciso sair fora… (coloca o revólver na cintura, sai de fininho) onde, onde me executo? :-| … tudo é imagem, ilusão e símbolo: tem que ser num lugar inútil, tão ridículo quanto nossa civilização, tão dispendioso e monumental quanto a obra dum corrupto… a piscina! óbvio. (cobre a boca para não rir alto) meu pai levou anos planejando a tal da piscina e, quando finalmente começou a construí-la, faliu. nem sequer terminou de colocar os azulejos. sem falar que a fundação da coisa era tão mal feita que rachou. tipo obra do MALuf! agora taí, só enche d’água quando chove. plantação de dengosos… vou deitar lá dentro e — pum! — piscina de sangue! 8-] … mensagens, mensagens, devo deixar algumas mensagens, devo isto a meus pais carnais que sempre foram tão bacanas comigo… (entra novamente em seu quarto e, muito eufórico, escreve em folhas soltas) “CORAGEM! HORDAS VIRÃO! — TENHAM FÉ, TUDO É NECESSÁRIO! — CHEGOU O GRANDE DIA DA PURIFICAÇÃO, O GRANDE DIA DA DANÇA DE SHIVA! — GAME OVER, GALERA!! — TODOS VÃO DANÇAR! — FIQUEM NA SINGULARIDADE! NÃO SE ENTREGUEM AO FRIO DA ALMA! — PARTO POR AMOR E NÃO POR DESESPERO — ORAI! O TEMPO DE VIGIAR CHEGOU AO FIM — GRAVEM O PRÓXIMO EPISÓDIO DO FRIENDS…” epa, que coisa mais besta, vou rasgar esta última… (rasga) isso não é hora pra piada… bom, agora só falta uma coisa… (vai à sala, pega uma Bíblia, o Gïta e o Corão. junta ainda alguns livros — “Obras completas de Shakespeare/vol.II”, “Pesadelo refrigerado”, “Assim falava Zarathustra” — e, no banheiro anexo ao seu quarto, atira-os à privada. sobre o tampo fechado, à guisa de selo, coloca os três livros sagrados. ao redor, pelo chão, espalha as mensagens) pronto. aqueles que tiverem cabeça pra entender que entendam. pra piscina… B-] … incrível incrível. finalmente selarei meu destino. e o da humanidade, claro. tão óbvio… tudo na casa me observa, tudo. despedidas… (desce as escadas que dão para o quintal) mas eu reabsorverei todas os entes, todos os seres… e o revólver frio, aqui, na minha barriga. meu pai vai se culpar por isso talvez. coitado, é um presente: caminho do meio… pronto: eis o altar sacrificial… (pula dentro da piscina) vou me deitar aqui, na parte funda. este é um ato profundo… nossa, quantas estrelas, e no céu de São Paulo!! 8-) fantástico. vieram ver seu senhor, claro… e aquela é Antares, alfa de escorpião, bem no zênite. (retira o revólver da cintura, aponta-o para o coração e, com lágrimas nos olhos, sorri) e aqui na Terra, eu, Shiva, encarnado sob o antigo signo da Águia, me consumirei como a fênix: eis o ferrão!

“PÁÁÁ!!!…”

(…!!!……………..)

“você não tem jeito, hem, Gabriel?”

“desculpa, tio…”

“bom, vou segui-lo. você me espera aqui junto ao corpo”

“mas, tio, ele não sa…”

“não saia daqui! tchau”

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