Os dois artigos abaixo — escritos por Fiódor Dostoiévski em 1876 — foram extraídos da coletânea Diário de um Escritor (SP: Edimax, 196? – trad. de E. Jacy Monteiro). São duas crônicas publicadas num jornal da época. Observe que a segunda é uma justificativa da primeira, uma vez que o escritor, sentindo-se incompreendido por boa parte de seus leitores, viu-se na obrigação de explicitar sua mais profunda convicção: sem a imortalidade da alma individual a vida humana não tem o menor sentido. Sim, Dostoiévski também participava de polêmicas na imprensa. (Yuri Vieira)
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A Sentença
Aqui está o raciocínio de um “suicida por tédio”, naturalmente materialista:
“Que direito tinha a Natureza de trazer-me ao mundo obedecendo às suas pretensas leis eternas? Sou consciente. Por que essa Natureza me criou sem meu consentimento, a mim, consciente; isto é, capaz de sofrer? Mas não quero sofrer mais. Para que serviria? A Natureza, pela voz da minha consciência, declara-me haver no Universo harmonia geral. Nela se baseiam as religiões humanas. E se não quiser desempenhar o meu papel nessa harmonia, será necessário que, apesar de tudo, me submeta às declarações de minha consciência? Será preciso aceitar o sofrimento em vista da harmonia do conjunto? Se me fosse dado escolher, preferiria ser feliz durante o curto momento da minha existência; preocupo-me infinitamente pouco com o todo e do que acontecerá a esse todo quando estiver morto. Por que motivo irei preocupar-me com a sua conservação em época em que já terei desaparecido? Preferiria viver como os animais, que são inconscientes. Parece-me que a consciência, longe de cooperar para a harmonia geral, é causa de cacofonia, visto como me faz sofrer. Olhem as pessoas que são felizes neste mundo, as que consentem sofrer! São precisamente os que parecem com os animais, que se aproximam da besta pelo desenvolvimento limitado da consciência, os que vivem vida brutal, que consiste unicamente em comer, beber, dormir e procriar. Comer, beber, dormir: isto significa, na linguagem humana, voar, roubar e construir um ninho. Poderão ojetar ser possível construir um abrigo de maneira razoável, digamos mesmo científica. Mas… para que? Para que criar uma situação de maneira justa e sábia na sociedade humana? Ninguém responderá a tal pergunta.
“Sim, se eu fosse flor ou vaca, talvez me sentisse feliz. Mas nada há que me faça experimentar alegria. Até mesmo a sorte mais elevada, a de amar aos seus semelhantes, é vã, visto como amanhã tudo ficará destruído, tudo voltará ao caos.
“Admitindo-se mesmo por um momento que a humanidade marche para a felicidade, que os homens do futuro sejam perfeitamente ditosos, bastará saber que para obter tal resultado a Natureza teve necessidade de martirizar milhões de seres durante milhões de anos para essa idéia tornar-se insuportável e odiosa. Sem levar em conta que a natureza se apressará a mergulhar mais uma vez essa felicidade no nada.
“Às vezes se me apresenta pergunta horrivelmente triste: e se o homem fosse somente objeto de uma experiência? E se não se tratasse senão de saber se é ou não capaz de adaptar-se à vida terrestre? Mas não, não há nada, não és experimentador, logo não és culpado; tudo está feito de acordo com as leis cegas da natureza e não só a natureza não me reconhece o direito de interrogá-la, e não me responde, mas não pode admitir seja o que for, nem responder.
“Considerando que quando a consciência me responde em nome da Natureza nada mais faço senão emprestar as próprias idéias à consciência e à natureza;
“Considerando que, nessas condições, sou ao mesmo tempo quem pergunta e responde, réu e juiz, parecendo-me esta comédia estúpida e intolerável e até mesmo humilhante;
“Em minha condição incontestável de quem pergunta e responde, de juiz e réu, condeno a Natureza, que me criou insolentemente para que sofra, a desaparecer comigo.
“Como não posso executar toda a minha sentença, destruindo a natureza ao mesmo tempo que a mim mesmo, suprimo-me a mim mesmo, entediado de suportar uma tirania de que ninguém tem culpa.”
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Afirmações Sem Provas
Meu artigo é relativo à idéia mais elevada da vida humana: a necessidade, a indispensabilidade da crença na imortalidade da alma. Quis dizer que sem essa crença a vida humana se torna ininteligível e insuportável. Parece-me ter enunciado claramente a fórmula do suicídio lógico.
O meu suicida não acredita na imortalidade da alma, e assim fala desde o início do artigo. A pouco e pouco, pensando que a vida não tem objetivo, arrebatado pelo ódio contra a inércia muda de tudo quanto o rodeia, chega à convicção que a vida humana é absurda. Apresenta-se-lhe tão claramente como a luz do dia que tão somente os homens semelhantes aos animais e que satisfazem a necessidades puramente animais podem consentir viver. Tais indivíduos vivem “para comer, beber e dormir”, como os brutos “para fazer o próprio leito e procriar”. Engolir, roncar e sujar talvez seduza o homem por muito tempo ligando-o à Terra; mas não a mim, homem superior, claro está. Não obstante, são os homens do tipo superior que sempre reinaram sobre a Terra, e nem por isso o que tinha de acontecer se deu de maneira diferente.
Mas há uma palavra suprema, uma idéia suprema, sem a qual a humanidade não pode viver. Muitas vezes pronuncia-a o pobre, sem influência, até mesmo perseguido. Mas a palavra pronunciada e a idéia que exprime não morrem e mais tarde, apesar da vitória aparente das forças materiais, a idéia vive e frutifica.
Disse N.P. que semelhante confissão em meu Diário constitui anacronismo ridículo, porque estamos atualmente no século das “idéias de ferro”, das idéias positivas; no século da “vida sobretudo”. Por isso, sem dúvida, aumentou tanto o número de suicidas entre as pessoas inteligentes e cultas. Asseguro ao digno N.P. e a todos os seus semelhantes que o ferro das idéias se transforma em algo muito mais brando quando chega a hora. Quanto a mim, uma das minhas maiores preocupações quando penso em nosso futuro é precisamente o progresso da falta de fé. A falta de crença na imortalidade da alma se arraiga cada vez mais ou, para dize-lo melhor, nota-se em nossos dias absoluta indiferença para essa suprema idéia da existência humana: a imortalidade. Tal indiferença converte-se em particularidade da alta sociedade russa. É mais evidente entre nós do que na maior parte dos países europeus. E sem esta idéia suprema da imortalidade da alma não podem existir nem homem nem nação. Todas as grandes idéias restantes derivam dessa.
O meu suicida é propagandista apaixonado da sua idéia: a necessidade do suicídio; mas não é nem indiferente nem “homem de ferro”. Sofre realmente; creio tê-lo feito compreender. É para ele demasiado evidente que não pode viver; está convencido que tem razão e não se pode refuta-lo. Para que viver, se está convencido que é abominável viver vida animal? Dá-se conta da existência de harmonia geral; di-lho a consciência, mas a ela não se associa. Não o compreende… Onde, então, está o mal? Em que se enganou? O mal está em ter perdido a fé na imortalidade da alma.
Não obstante, procurou com todas as suas forças o sossego e a conciliação com o que o rodeia. Quis falar no “amor à humanidade”. Mas isto também lhe escapa. A idéia de que a vida da humanidade nada mais é do que um instante; de que tudo, mais tarde, se reduz a zero, mate, dentro dele, até mesmo o amor à humanidade. Tem-se visto em famílias desgraçadas e desunidas de pobres sentir horror aos filhos a quem queriam tanto! A consciência de em nada poder socorrer a humanidade sofredora é capaz de transformar o amor que por ela se sente em ódio. Os senhores de “idéias de ferro” claro que não acreditarão em minhas palavras. Para eles o amor à humanidade e sua felicidade está tão bem organizado que não vale a pena pensar nisso. E desejo fazê-los rir de qualquer maneira. Declara, portanto, que o amor à Humanidade é inteiramente impossível sem a crença na imortalidade da alma humana. Os que querem substituir esta crença pelo amor à Humanidade depositam na alma dos que perderam a fé o germe do ódio à Humanidade. Que dêem de ombros os sábios das “idéias de ferro” ao ouvir-me exprimir tal idéia. Mas esta idéia é mais profunda que a sabedoria deles, e chegará o dia em que se transformará em axioma.
Chego mesmo a afirmar que o amor à Humanidade é em geral pouco compreensível (leia-se inacessível) para a alma humana. Somente o sentimento pode justifica-lo, e este somente é possível com a crença na imortalidade da alma humana. (E, além disso, sem provas.)
Em resumo: está claro que sem crenças, o suicídio se torna lógico e até inevitável para o homem que apenas se elevou acima das sensações da besta. Ao contrário, a idéia da imortalidade da alma, prometendo a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Nisto parece existir contradição. Se, distinta da vida terrestre, temos outra celeste, para que fazer muito caso desta aqui em baixo? Mas somente pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoável da vida sobre a Terra. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação ao planeta diminui, e a perda do sentido supremo da vida conduz incontestavelmente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma é tão necessária à vida humana é por ser o estado normal da Humanidade, provando que a imortalidade existe. Em uma palavra: esta crença é a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência real para a Humanidade.
Eis aí o objetivo do meu artigo, a conclusão a que desejava que cada um chegasse quando o escrevi.
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Nota de Y.V.S.:
Vale a pena observar a perspicácia da análise de Dostoiévski que, partindo da psicologia pura, chega a ser profética. O avanço das tais “idéias de ferro” causou um número de vítimas, não apenas na Rússia mas também nos demais países socialistas – incluindo a Alemanha nazista (Partido Nacional-Socialista) -, nunca antes visto na história: mais de 100 milhões de pessoas só no século XX. Tal extermínio em massa de um povo por seus próprios dirigentes é uma prova contundente dessa desespiritualização que, infelizmente, ainda não deixou de se alastrar pela Terra.
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