Conflito – Liberdade – Relações

“Enquanto, psicologicamente, tivermos necessidade e fizermos uso uns dos outros, não haverá relações. As relações significam comunhão; e como é possível a comunhão quando há exploração?”

Interlocutor: “O conflito entre a tese e a antítese é inevitável e necessário; produz a síntese, da qual nasce outra tese com sua correspondente antítese, e assim por diante. O conflito não tem fim, e só pelo conflito se torna possível a evolução, o progesso”.

Krishnamurti: O conflito produz a compreensão dos nossos problemas? Produz desenvolvimento, progresso? Ele pode produzir melhorias secundárias, mas o conflito, por sua própria natureza, não é um fator de desintegração? Por que persistis em afirmar que o conflito é essencial?

“Sabemos que existe conflito em todos os níveis de nossa existência; assim, por que negá-lo ou fazer-nos cegos para ele ?”

Não estamos cegos para a luta constante que existe interna e externamente; mas, permiti-me perguntar: por que sustentais que ela é essencial?

“O conflito não pode ser negado; faz parte da estrutura humana e servimo-nos dele como meio para chegarmos a um fim, sendo esse fim o ambiente adequado para o indivíduo. Trabalhamos para alcançar êsse alvo, e servimo-nos de todos os meios para realizá-lo. A ambição, o conflito, são a marca do homem, e podem ser usadas contra ele ou a seu favor. Através do conflito, caminhamos para coisas mais grandiosas.”

Que entendeis por conflito? Conflito entre o quê?

“Entre o que foi e o que será.”

“O que será” é a reação ulterior do que “foi” e do que é. Por conflito entendemos a luta entre duas idéias opostas. Mas a oposição,sob qualquer forma que seja, leva à compreensão? Quando é que há compreensão de um problema?

“Há conflitos de classes, conflitos nacionais e conflitos ideológicos. O conflito é a oposição, a resistência nascida da ignorância de certos fatos históricos fundamentais. Pela oposição torna-se possível a evolução, o progresso, e todo esse processo é vida.”

Sabemos que existe conflito em todos os diferentes níveis da vida, e seria absurdo negá-lo. Mas esse conflito é essencial? Até agora temos presumido que sim, ou o temos justificado com sutis raciocínios. Na natureza, a significação do conflito pode ser de todo diferente; entre os animais, bem pode ser que o conflito, tal como o conhecemos, seja de todo inexistente. Mas, para nós o conflito se torna um fator de enorme importância. Por que assume ele tanta significação nas nossas vidas? A competição, a ambição, o esfôrço para ser ou para não ser, a vontade de realizar, etc. – tudo isso faz parte do conflito. Por que aceitamos o conflito como coisa essencial à existência? Isso não significa, entretanto, que devamos aceitar a indolência. Mas por que toleramos o conflito, interior e exteriormente? O conflito é essencial à compreensão, à resolução de um problema? Não é melhor investigar, em vez de afirmar ou negar? Não devemos tentar descobrir a verdade que a questão encerra, em vez de nos mantermos apegados às nossas conclusões e opiniões?

“Como é possível o progresso de uma forma de sociedade para outra, sem conflito? “Os que têm” nunca renunciarão voluntariamente às suas riquezas; terão de fazê-Io à fôrça, e esse conflito fará nascer uma nova ordem social, uma nova maneira de vida. Tal não é possível por meios pacíficos. Não desejamos, necessariamente, empregar a violência, mas temos de enfrentar os fatos.”

Presumis saber como a nova sociedade deve ser e que o vosso antagonista não o sabe; só vós possuis esse extraordinário conhecimento, e estais pronto a liquidar todos os que vos barrarem o caminho. Por esse método, que julgais essencial, só podeis gerar oposição e ódio. O que conheceis não é mais do que uma outra forma de preconceito, uma diferente espécie de condicionamento. Vossos estudos históricos, ou os de vossos líderes, são interpretados de acordo com um certo “fundo”, que determina a vossa reação; e a essa reação chamais “o nôvo caminho”, a nova ideologia. Toda reação de pensamento é condicionada, e promover uma revolução com base no pensamento ou na idéia, significa perpetuar uma forma modificada do que foi. Essencialmente, sois reformadores, mas não verdadeiros revolucionários. Reformas e revoluções baseadas em idéias são fatores de retrocesso na sociedade. Dissestes – não é verdade? – que o conflito entre a tese e a antítese é essencial, e que esse conflito dos opostos produz uma síntese.

“O conflito entre a sociedade atual e o seu oposto, sob a pressão dos acontecimentos históricos, etc., produzirá eventualmente uma nova ordem social.”

O oposto é dissimilar de o que é? Como nasce o oposto? Não é êle uma projeção modificada de o que é? A antítese não contém os elementos da própria tese? Uma não é completamente dissimilar da outra, e a síntese é ainda a tese, modificada. Embora periodicamente pintada de cor diferente, embora modificada, reformada, remodelada de acordo com as circunstâncias e premências, a tese é sempre tese. O conflito entre os opostos é extremamente ruinoso e estúpido. Intelectual ou verbalmente, pode-se provar ou “desprovar” qualquer coisa, mas isso não altera certos fatos óbvios. A atual sociedade está baseada na ganância individual; e o seu oposto, com a resultante síntese, é o que chamais a nova sociedade. Na vossa nova sociedade, à ganância individual opõe-se a ganância do Estado, sendo o Estado os dirigentes; nela, é o Estado que tem a máxima importância e não o indivíduo. Desta antítese, dizeis, surgirá eventualmente uma síntese, em que todos os indivíduos serão importantes.. Isso é um futuro imaginário, um ideal; é pura “projeção” do pensamento, e o pensamento é sempre reação da memória, de condicionamento. Aí está, com efeito, um verdadeiro círculo vicioso, sem possível saída. Este conflito, esta luta dentro da prisão do pensamento, é o que chamais “progresso”.

“Direis então que devemos permanecer como estamos, com toda a exploração e corrupção da atual sociedade?”

De modo nenhum. Mas a vossa revolução não é revolução, porém, tão-só, a passagem do poder das mãos de um grupo para as mãos de outro, a substituição de uma classe por outra. Vossa revolução é, meramente, uma estrutura diferente construída com o mesmo material e de acordo com o mesmo padrão básico. Há possibilidade de uma revolução fundamental, que não é conflito e não se baseia no pensamento, com suas “projeções”, seus ideais, dogmas, Utopias, concebidos pelo “eu”; mas, enquanto pensarmos em termos de “mudar isto para aquilo”, de nos tomarmos mais ou menos, alcançarmos um fim, essa revolução fundamental será impossível.

“Tal revolução é uma impossibilidade. Vós a propondes a sério?”

Ela é a única revolução; a única transformação fundamental.

“E como pretendeis levá-la a efeito?”

Pelo percebimentodo falso como falso; pelo percebimento da verdade no falso. Evidentemente, faz-se necessária uma revolução fundamental nas relações humanas; todos nós sabemos que as coisas não podem continuar como estão, sem acarretarem males e desastres cada vez maiores. Mas todos os reformadores têm, como os chamados revolucionários, um fim em vista, um alvo para atingir, e tanto estes como aqueles se servem do homem como o meio de atingirem os seus fins. O servir-se do homem para a consecução de um objetivo é que constitui o verdadeiro fim, e não o obter-se um particular objetivo. Não se pode separar o fim dos meios, já que se trata de um processo único, inseparável. Os meios são o fim; não poderá existir uma sociedade sem classes como resultado do conflito entre as classes. Estão bem patentes os resultados do emprego de meios errôneos para um suposto fim correto. Não se alcança a paz por meio da guerra ou preparativos de guerra. Todos os opostos são projetados do “eu”; o ideal é a reação proveniente do que é, e o conflito para se alcançar o ideal é uma luta vã e ilusória, dentro da prisão do pensamento. Por meio desse conflito, não há alívio, não há libertação para o homem. Sem a liberdade, não pode haver felicidade; e a liberdade não é um ideal. A liberdade é o único meio de libertação. Enquanto, psicológica ou fisicamente, o homem for utilizado como instrumento, seja em nome de Deus, seja em nome do Estado, haverá uma sociedade baseada na violência. A utilização do homem para um dado fim é uma artimanha do político e do sacerdote, e ela nega as relações.

“Que quer dizer isso?”

Quando nos servimos uns dos outros para satisfação mútua, existem relações entre nós? Quando vos servis de outra pessoa para vosso conforto, assim como usais uma peça de mobília, estais em relação com essa pessoa? Estais em relação com os vossos móveis? Podeis chamá-los “vossos”, e nada mais; não tendes relações com eles. De modo idêntico, quando utilizais outro indivíduo para vossa própria vantagem física ou psicológica, geralmente chamais “vossa” tal pessoa, a possuís; e a posse é um estado de relação? O Estado faz uso do indivíduo e o chama seu cidadão; mas o Estado não tem relações com o indivíduo; apenas serve-se dele, como instrumento. Um instrumento é uma coisa morta, e não se pode ter relações com o que é morto. Quando usamos ,o homem para um certo fim, por mais nobre que este seja, nós o queremos como instrumento, como coisa morta; se não podemos usar coisas vivas, então procuramos coisas mortas; nossa sociedade está baseada no uso de coisas mortas. O uso que fazemos de outro, torna-o o instrumento morto de nossa satisfação. Relações só podem existir entre os que estão vivos, sendo a utilização um processo de isolamento. É esse processo de isolamento que gera conflito, antagonismo, entre os homens.

“Por que dais tanta importância às relações?”

A existência são relações; existir é estar em relação. As relações constituem a sociedade. A estrutura de nossa sociedade atual, baseada que está na mútua utilização, produz violência, destruição e sofrimentos; e se o chamado “Estado revolucionário” não alterar fundamentalmente essas condições de utilização, só poderá produzir, talvez num nível diferente, mais conflito ainda, mais confusão e antagonismo. Enquanto, psicologicamente, tivermos necessidade e fizermos uso uns dos outros, não haverá relações. As relações significam comunhão; e como é possível a comunhão quando há exploração? A exploração implica medo, e o medo conduz, inevitavelmente, a ilusões e sofrimentos de toda ordem. O conflito só existe na exploração, e nunca nas relações. Existe conflito, oposição, inimizade, entre nós, quando fazemos uso uns dos outros, como meios de prazer, de realização. Esse conflito, evidentemente, não poderá ser resolvido, enquanto nos servirmos dele como meio de alcançarmos um objetivo, projetado pelo “eu”; e todos os ideais, todas as Utopias são projeções do “eu”. É essencial perceber isso, porque se poderá então “experimentar” esta verdade, de que o conflito, sob qualquer forma que seja, destrói as relações, a compreensão. Só há compreensão quando a mente se acha quieta; e não está quieta a mente enquanto se mantém ligada a uma ideologia, dogma ou crença, ou prêsa ao padrão de sua própria experiência, suas lembranças. A mente não está quieta, enquanto empenhada em adquirir ou “vir a ser”. Toda aquisição é conflito, todo “vir a ser” é processo de isolamento. A mente não está quieta, quando é disciplinada, controlada, refreada: esta é uma mente morta, pois está a isolar-se por meio de várias formas de resistência; por conseqüência, ela cria, inevitàvelmente, sofrimentos para si própria e para outros. A mente só está tranqüila quando não está presa na rede do pensamento – a rede tecida por sua própria atividade. Quando a mente está tranqüila – mas não foi obrigada a estar tranqüila – surge então um fator verdadeiro – o Amor.

“Mas o amor não fará andar as máquinas, fará?” (*)

(Extraído de Reflexões sobre a vida, de Jiddu Krishnamurti – Ed. Cultrix, Rio de Janeiro-RJ, 1979.)

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(*) Nota de Y.V.S.: “Ô duença difícir di curá, seo! pior qui bichu di pé é bichu di cabeça!!”

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