“Ascese” de Nikos Kazantzakis

Nikos Kazantzakis

Leia a seguir alguns excertos do livro Ascese, de Kazantzakis, um dos primeiros que li por recomendação de Hilda Hilst, durante minha estadia na Casa do Sol. (Antes, porém, um detalhe importante: apesar do tom revolucionário de algumas assertivas, atente para o fato de que tal ardor não tem nada a ver com política, estando mais para o que a própria Hilda afirmou na entrevista concedida ao Cadernos de Literatura Brasileira — “a verdadeira revolução é a santidade” — ou, em certo sentido, para aquilo que Krishnamurti repetiu tantas vezes — “a revolução fundamental é revolucionar-se“: trata-se, enfim, da transformação, pela fé, da alma humana individual.)

A ascese:

“Teu primeiro dever consiste em perceber e aceitar, sem inútil revolta, os limites do entendimento humano, e em respirar e trabalhar sem tréguas dentro da rigidez dos limites.”

“Reconheço esses limites, e em sua cidadela, com resignação, coragem e amor, luto com satisfação, como se eu fora livre.”

“Disciplina: eis a mais alta das virtudes. Graças a ela, a força e o desejo se equilibram, e o esforço do homem pode produzir seus frutos.”

“Não aceito os limites! Os fenômenos não me podem conter! Asfixio-me! viver esta angústia, em teu sangue, profundamente, eis teu segundo dever.”

“Por trás de todas essas aparências, sinto que uma essência luta. Quero unir-me a ela.”

“Qual será meu dever? Romper o corpo; lançar-me à união com o Invisível; impor silêncio a meu cérebro, a fim de ver e ouvir o apelo do Invisível.”

“A outra voz – que chamaremos de sexto sentido ou coração – contesta e grita: ‘Não e não! Não admitas jamais as limitações do homem! Rompe esses limites! Nega tudo o que teus olhos vêem; morre, dizendo: a morte não existe!”

“Sou uma criatura débil e efêmera, massa de argila e sonho. Mas, em meu interior, sinto turbilhonar todas as forças do universo.”

“Beijemo-nos, abracemo-nos, de corações uníssonos, nós que somos humanos! Tanto quanto a temperatura da Terra nos permita, enquanto não tenhamos sido exterminados pelos terremotos, os dilúvios, as avalanchas e os cometas! Criemos um cérebro e um coração para a Terra. Criemos, atribuamos o sentido humano ao inumano combate!”

“Liberta-te do conforto ingênuo do cérebro que se ordena na esperança de assim domar os fenômenos; livra-te do terror do coração que procura encontrar a essência na esperança.”

“Afasta de ti a maior das tentações: a esperança [mundana]. Eis o terceiro dever.”

“Despede-te de tudo a cada instante. Fixa teu olhar, lento e apaixonado, sobre todas as coisas, e diz contigo: nunca mais!”

“Olha só: vivem, trabalham, amam, esperam. Olho outra vez: e já todos terão desaparecido!”

“Congrega tuas forças e escuta. O coração do homem é todo ele um grito; debruça-se sobre teu peito para ouvi-lo; alguém dentro de ti luta e reclama.”

“Ama o perigo. Que haverá de mais difícil? É isto que eu quero. Qual o caminho a seguir? O que sobe, o mais escarpado. Este é o que eu tomo; segue-me!”

“Aprende a obedecer: só é livre aquele que sabe obedecer a um ritmo superior a si mesmo.”

“Aprende a comandar: só quem sabe comandar pode representar-me nesta Terra.”

“Ama a responsabilidade. Dize a ti mesmo: só eu tenho o dever de salvar a Terra. Se ela não for salva, a culpa é minha.”

“Mantém-te sempre insatisfeito e revoltado. Assim que um hábito se torna agradável, elimina-o. O maior dos grandes pecados é a satisfação.”

“‘Aonde vamos? Será que venceremos? Qual a razão deste combate?’ – Cala-te; os combatentes jamais perguntam.”

“As gerações futuras não existem num tempo distante e vago, mas já estão agindo e desejando em tuas entranhas mais íntimas.”

“Pois não és simplesmente um escravo. Contigo nasce uma nova oportunidade, e o grande coração tenebroso de tua raça estremece com um novo impulso de liberdade.”

“Queiras ou não, és portador de um novo impulso, de uma idéia nova, de um novo sofrimento. Enriquece a terra paternal acrescentando-os a ela.”

“Tu és responsável. Não controlas apenas a tua própria existência insignificante e efêmera. Mas és um lance de dados em que se joga, num momento fugaz, todo o destino de tua raça.”

“‘Não estou só! Não estou só!’ – Este conceito deve abrasar-te os olhos noite e dia.”

“Que é a felicidade? A experiência de todos os infortúnios. Que é a luz? A contemplação de toda a treva, com olhos claros e intrépidos.”

“Dessa massa humana, alguém procura libertar-se com os pés e as mãos, afogado entre lágrimas e sangue.”

“Não é meu coração que bate e se agita no meu sangue; é a Terra inteira, que olha para trás e revive a terrível ascensão para sair do caos.”

“Quando falo aos homens, distingo Deus que luta em seus cérebros mesquinhos e grosseiros.”

“Nem a dor, nem a esperança terrestre, nem a esperança futura, nem a alegria, nem a vitória – nada disto é por si só a essência do meu Deus. Toda religião que ergue um culto a uma dessas máscaras de Deus tolhe o nosso coração e a nossa mente.”

“Qual é o fim desse combate? Assim indaga o pobre cérebro do homem, preocupado apenas, como sempre, com o seu próprio interesse, e esquecido de que o grande Sopro não opera no tempo, no espaço ou na causalidade humana.”

“O mais profundo de nossos deveres humanos não é o de analisar o ritmo da marcha de Deus, mas de ajustar a ela o ritmo da nossa vida precária.”

“Só assim é que nós, mortais, poderemos criar o imortal: colaborando com Ele.”

“Para que este Sopro não nos abandone, tratemos de revesti-lo com palavras, alegorias, pensamentos e encantações. (…) Mas Ele não se deixaria aprisionar pelas vinte e quatro letras que conseguimos arregimentar; e percebemos logo que essas palavras, esses símbolos, esses sentimentos e esses encantos só podem constituir uma nova máscara diante do abismo.”

“Somente limitando o ilimitado é que podemos trabalhar no interior das fronteiras do círculo humano que acaba de ser traçado.”

“Que significa trabalhar? Povoar esse círculo de desejos, de angústias, de ações, forçá-lo até as suas fronteiras mais recuadas, não poder ser mais contido por elas e rompê-las, reduzindo-as a nada. Estirando assim os fenômenos, enaltecemos e ampliamos a essência.”

“Daí o valor inestimável de nosso retorno aos fenômenos, após o contato com a essência.”

“No círculo gigantesco da ação divina devemos distinguir o pequenino arco vibrátil de nossa época.”

“Nessa imperceptível curva de fogo, sentindo profundamente o impulso de todo círculo, podemos avançar em harmonia com o universo, adquirindo o nosso próprio impulso, e combatendo.”

“Ouçamos o nosso coração e perscrutemos com intrepidez o abismo. Com a nossa carne e o nosso sangue, modelemos a nova face de nosso Deus, aquela que se adapta ao nosso tempo.”

“A Vida é um serviço militar nos exércitos de Deus. Como os Cruzados, partimos, voluntários ou não, para libertar não o Santo Sepulcro, mas o próprio Deus, atolado na matéria e em nossa alma.”

“Toca fogo em tudo, eis nosso dever de hoje, num mundo dissoluto e sem esperanças.”

“Assim, pois, a salvação do Universo é ao mesmo tempo nossa própria salvação. A solidariedade entre os homens já não é um luxo dos corações sensíveis, mas uma necessidade, uma profunda necessidade de autodefesa. Como na batalha, a salvação de teu próximo é também a tua.”

“Deixemos nossa porta aberta ao pecado. Não tapemos os ouvidos com receio de ouvir as sereias; e, sem nos fazermos amarrar, por fraqueza, ao mastro de uma grande idéia, não nos percamos ao ouvir e abraçar as sereias.”

“Deus exclama: Abre teus olhos, quero ver! Aplica os teus ouvidos, quero ouvir! Segue à minha frente, que és minha cabeça!”

“Pela primeira vez, Deus pode contemplar, através de nosso espírito e de nosso coração, sua luta sobre a Terra.”

“É seu dever realizar seus próprios trabalhos antes de morrer. Sem isso, não pode ser salvo. É a sua própria alma, dispersa em tudo que o rodeia, nas árvores, nos animais, idéias e homens, que ele salva ao realizar suas tarefas.”

Nikos Kazantzakis, “Ascese”.

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