Quando eu era Chinês…

Public Sentence

Acho que todo mundo conhece alguém que já fez a tal “regressão a uma vida passada“. A coisa toda é tão batida que o escritor Mário Prata chegou a publicar o livro Minhas vidas passadas a limpo, no qual, salvo engano, ele conta ter sido até mesmo a mucama da Cleópatra. Claro, tudo piada, mas o livro chegou no momento certo — muito embora eu não o tenha lido e nem mesmo pretenda lê-lo. Mas, gozações à parte, a tal “vida passada” está sempre nos rondando. Ano passado, por exemplo, minha namorada vivia dizendo que iria até um desses hipnotizadores, terapeutas, ou sei lá o quê, descobrir em que momento sua alma teria tomado o atalho errado que a condenou a vir para este planeta doido. Infelizmente, nenhum dos sujeitos que encontrou conseguiu “transportá-la” para uma de suas antigas, em suas próprias e gaiatas palavras, “encadernações“. Ela sempre sentia que o figura era ou um charlatão ou alguém em quem não se poderia confiar a guia de semelhante experiência. E acabou desistindo. Pelo meu lado, não me lembro de tê-la desencorajado ou apoiado, uma vez que eu tinha — e talvez ainda tenha — meus preconceitos com relação à eficácia do processo (no que se refere à resolução de problemas atuais) mas, apesar disso, e exatamente por saber que eram preconceitos, tampouco tinha o direito de interferir. Já uma amiga da minha irmã, durante a festa de aniversário da minha sobrinha, me narrou tim-tim por tim-tim todos os passos da sua experiência. Ela, que sempre fora uma cética, chorava ao me dizer como tudo o que viu foi muito palpável, muito marcante e significativo. Nada daquilo se assemelhava a um sonho, mas tinha tudo da realidade: a visão, o som, o tato, o cheiro, o sentimento, os pensamentos. Viu-se como uma mulher muito rica e solitária que viveu e morreu sem jamais ter, ao seu lado, alguém que pudesse amar.

Não sei dizer exatamente o que penso sobre a experiência. Não sei se a pessoa acessa uma memória passada, uma cena imaginária, o inconsciente coletivo ou, como poderíamos inferir a partir do Livro de Urântia, a memória de nossa Centelha Divina, a qual pode já ter pertencido a uma outra personalidade que não sobreviveu à morte do corpo físico. Enfim, sobre as causas, sei que só podemos especular. Mas sei que a experiência ocorre, não é brincadeira. Lembro-me inclusive do que me disse uma vez um amigo: “Acreditei que, quando estivesse louco de cogumelo, eu apenas pensaria estar vendo o chão se mexer e as paredes fazendo caretas. Mas não, foi terrível: eu REALMENTE vi o chão se derreter e REALMENTE vi as paredes fazerem caras horríveis pra mim!” E, durante a regressão, sei que ocorre o mesmo: você realmente se vê como outra pessoa!

Alguns amigos não entendem por que às vezes sou tão suscetível aos revolucionários políticos que andam por aí, já que, para meus amigos, o simples fato de me chamar Yuri — graças ao filme O Doutor Jivago (coisas do meu pai) — e de o Brasil passar por um processo político tão semelhante ao da Rússia pré-comunista não são lá motivos suficientes para tanto. (!) Mas, em fins do ano passado, acho que encontrei uma resposta. (Claro, é possível que tudo, ao invés de ser a causa, não passe de um efeito, afinal, continuo tão impressionável hoje quanto era na infância.) Certa noite, acordei com tanta sede que tive de descer até a cozinha para beber um copo d’água. Quando voltei, fiz alguns exercícios respiratórios e me deitei. Não me lembro quando tudo começou, só sei que, de repente, eu já estava num local cercado por muros e, tendo as mãos amarradas às costas, caminhava atrás de outro prisioneiro que chorava copiosamente. À nossa frente ia um soldado e um rapaz que, mais aparamentado e cheio de si, passava por ser um jovem oficial. Os três eram chineses, talvez coreanos, e, por isso, suponho que eu também o fosse. Lembro-me de olhar a paisagem tosca à nossa frente, o céu nublado, um muro à esquerda, de sentir o vento gelado bater em meu rosto e de uma absurda sensação de sobressalto. Algo terrível iria acontecer. Minhas pernas estavam acorrentadas de modo que só conseguia dar passos curtos e rápidos. Às vezes alguém me golpeava nas costas com um objeto pesado. Logo adiante, entramos por uma aléia ladeada por ciprestes, à esquerda, e por pequenas casas, à direita, que se pareciam mausoléus. Irritado com a lamúria do meu colega de infortúnio, rosnei entredentes: “Não dê esse gostinho a eles!” Se quiserem saber em que língua disse isso, não sei dizer. Eu apenas sentia o que o homem que eu era sentia, e o observava desde seu interior. Não o comandava, mas sei que ele era eu. (Se você assistiu ao filme Quero ser John Malkovich terá uma boa idéia do que estou dizendo.) Fomos escoltados até um desses supostos “mausoléus” que mais se parecia um pequeno escritório, tendo inclusive uma pequena mesa a um canto, cheia de cadernos. Lá dentro, finalmente gritei: “Seja forte! Você não percebe que isso não adianta nada!” E tomei uma pancada dolorida na nuca. Com uma cara de menino mimado, o oficial ordenou aos dois soldados que fôssemos colocados diante de uma parede suja. Ambos portavam fuzis. Todo metido a besta, o oficial se aproximou e perguntou se queríamos fazer um último pedido. Meu colega aumentou o choro e caiu de joelhos, rogando perdão ao “Partido”. Engraçado, seu desespero me dava forças para interpretar o corajoso da dupla. Com o peito estufado, respondi: “Gostaria de fumar um cigarro…” Lembro de que, embora fossem todos chineses (ou coreanos), havia algo de nazista no uniforme daquele oficial. Ele, então, com ar bonachão, retirou um cigarro de um maço e o colocou na minha boca. Inclinei-me para que ele o acendesse — eu era bem mais alto. Traguei várias vezes, com bastante força — os soldados riam da minha aparente pressa. Quando vi que havia brasa suficiente, cuspi o cigarro no rosto do oficial. Surpreso, vi aquela ponta brilhante queimar seu cabelo e grudar em sua franja. Mais que depressa, e como quem afugenta uma mosca, o oficialzinho esbofeteou para longe o cigarro. Dei, então, uma sonora e debochada gargalhada, tal como um desses japoneses malucos dos filmes do Kurosawa. Irado, o garoto não pensou duas vezes: sacou uma pistola, apontou meu rosto e disparou. Nem ouvi o tiro, só sei que ficou tudo escuro. Pensei: “Nossa! Não doeu nada!” e logo em seguida: “Meu Deus! Ainda estou vivo!” Nesse momento ouvi um rugido muito alto, senti um forte tremor e acordei em meu quarto. Sim, senhores. Socialismo? Comunismo? Fascismo? Nazismo? Tô fora!!

[Ouvindo: ♫ Rebel Rebel — David Bowie]

Back to Top