Notas de um psicãologo na casa de Hilda Hilst

No romance O Doutor Jivago, de Pasternak, encontro esta afirmação: “O homem não morre numa vala, como um cachorro, mas em seu lugar na história, enquanto a obra da conquista da morte está em pleno progresso; ele morre participando dessa obra”. Neste ponto há uma discussão entre Teco sobre uma das mesas da Casa do SolNikolai Nikolaievitch, tio de Yuri Jivago, e o pedagogo Ivan Ivanovitch a respeito da vida eterna e da fidelidade ao Cristo. Mas o grifo é meu… Bem, ao assistir ao filme Amor além da vida, em companhia de Hilda Hilst, vejo o personagem de Robin Williams ser recepcionado no além, após sua morte, pelo dálmata que havia pertencido à filha. O cachorro comporta-se com aquela efusão típica da saudade canina. Comento com a senhora H: “Nossa, Hilda, quando você chegar em Marduk vai ser afogada por um enxame de cães…” Ela ri, eu penso: “Se dependesse dos livros dela, nenhum homem acabaria numa vala. Se dependesse de sua generosidade, nem sequer um cachorro…”

Conheci Hilda Hilst no primeiro semestre de 1998 e, desde Outubro do mesmo ano, convivo diariamente com ela, com o escritor José Luis Mora Fuentes e demais moradores da Casa do Sol, sua chácara perto de Campinas. Entre esses habitantes, encontram-se quase noventa cães. Para quem nunca se intrometeu numa sociedade animal, a sensação inicial pode ser de desconforto. Você é cercado por latidos e abanos de cauda vindos de todos os lados. Minutos depois, o silêncio se restabelece.(1) Tal desconforto vem de um preconceito: o irracional é aquilo que vem contra a razão, logo, algum desses irracionais me morderá a qualquer minuto!… Balela. Apesar de estarem aquém da – e não contra a – razão, estão abertos ao afeto, linguagem universal entre todo ser vivo. Mas, neste último ano, o que mais tem chamado minha atenção é a semelhança entre esta pré-sociedade e a sociedade humana. Porque se o humano transcende seu lado animal, ainda assim está condicionado por ele. E muito.

Dentro de casa circulam em média vinte cães, permanecendo os demais nos vários canis da chácara. São a imagem dos excluídos e incluídos. (2) Estes são hostilizados por aqueles e vice-versa. (O único momento que une a todos é quando um uivo os contamina de uma expressão uníssona de dolorida fraternidade.) Toda vez que um novo elemento consegue escapar da tranca dura e adentra a casa, ocorre uma barafunda: ninguém quer ter seus privilégios ameaçados. (Alguém conhece esta situação? Pois é, tem origem animal.) Muitas vezes, o Chico – que acumula as funções de caseiro, carcereiro e anjo da guarda canino – precisa intervir e resgatar o intruso. Outras, tudo não passa de trote e o calouro vai sendo assimilado aos poucos pela elite. E quais são os privilégios da dita cuja? Dormir nos sofás, na cama da e com a Hilda, sob a mesa do escritório, sobre a mesa do pátio, comer bolachas além da ração são menos relevantes. O que de fato lhe interessa é o contato mais contínuo com o ser humano. Nos olhos de um cão não há – como quer Carlos Heitor Cony – profundidade, senão inocência e, principalmente, admiração: para ele somos semideuses, verdadeiros extraterrestres aportados a seu mundo irracional. E tudo o que esperam de nós é que não sejamos o Deus das Batalhas, mas o Pai afetuoso. Para semideuses com iras olímpicas reservam seus caninos brancos.

Ultimamente tenho me comovido com o Marujo. Para se ter uma idéia de seu estado atual basta pensar no Napoleão de Santa Helena. Marujo é o cão que aparece na maior parte das fotos de Eduardo Simões para o Cadernos de Literatura Brasileira, que traz a Hilda como tema. Além de inteligente, Marujo é justo, bravo (em seu melhor sentido) e Hilda com seu "cão número 1"carinhoso. Já o vi diversas vezes separando brigas de outros cães. Intrometia-se entre os contendores e rosnava mandando cada qual pra seu lado. Mas perdeu o poder para Zidane, mais jovem, muito maior e mais forte. Quando o vi abanando o rabinho, a cabeça baixa, submisso, tentando agradar ao novo líder, disse: “Pelo amor de Deus, Marujo, não perca a dignidade!” (A gente começa a conversar com os cães depois de certo tempo. A entonação é importantíssima.) Naquele momento vi que não tinha mais jeito. O Marujo, agora, anda triste pelos cantos, com uma coceira que não acaba nunca. Creio que a mesma que não deixava Napoleão – em Santa Helena – sacar a mão da jaqueta.

Bom, pelo menos Zidane – o novo líder – é divertido e tem bom coração. É apenas jovem demais para ter o mesmo sentido de justiça do Marujo. Aliás, o problema não é bem juventude. Apenas depois de meses de convivência – sou meio distraído – percebi o porquê de o Marujo e o Teco serem cães mais educados, equilibrados, tranqüilos e desapegados: são castrados! Fiquei chocado quando o soube. Digamos que mais da metade dos instintos que lhes bloqueava a inteligência foram extirpados. Eu mesmo estranho essa constatação: houve uma transcendência compulsória de sua mera animalidade. (Favor não adotarem tal método com nossos políticos.) Já o Zidane – ou o idoso Mister Totó, apelidado pelo Mora Fuentes de Fudêncio – ficam psicãopatas quando uma cachorra entra no cio. E aí, adeus liderança, Zidane só terá faros pra amante. (A moça, claro, estará atrás das grades, haja vista a situação quase chinesa da nossa população canina.) Mas não se enganem, o Marujo tem seus limites. Certo dia, após um incêndio na fazenda vizinha, vi um rato fujão esconder-se no banheiro dos fundos. Mas quem disse que consegui convencer o caçador Marujo a entrar lá dentro? Nem arrastado. Medo do rato? Não, Hilda me explicou: “O Vivo(3) dava banho neles lá dentro…” Hum, Pavlov – com sua teoria dos reflexos condicionados – explica…

Zidane, sua filha Sílvia e o Nenê-gão adoram lutar kung fu. (Dica: nunca tente capoeira. O ato de virar o traseiro pra um Hilda na Casa do Sol.cão é perigosíssimo.) Foi num desses ataques múltiplos sofridos por mim que acabei descobrindo a serventia de todo aquele gestual que vemos nos filmes chineses: pura distração, pura hipnose. Se você não ficar agitando os braços como um maluco, emitindo kiais sem sentido, eles não pararão de tentar derrubá-lo. Mas precisou aparecer o Bruce Lee pra mostrar que isto só funciona com irracionais…

Outro novato curioso é o Pitchulo. Junto com o Caco (um cocker spaniel), o Pitchulo é o único cão de raça por aqui, no caso um poodle. O engraçado é que, numa chácara, o casaco de peles depõe contra seu dono. O pitchulo, embora branco, reveste-se de marrom em tempo integral. Parece um homeless em meio a vira-latas aristocratas. Sua função é testar a paciência do líder. Late o tempo todo ao redor de Zidane que, como bom Napoleão, o ignora completamente. (4) Já o Caco é outro caso interessante. Após passar cerca de cinco anos vivendo como único cão de um apartamento em São Paulo, Caco finalmente veio perder a virgindade. Segundo seus ex-donos, já estava psicãotico. Tentou mesmo atacá-los. Mas agora que está aqui, finalmente apaixonou-se: pelo Zidane. (Os líderes tem que agüentar cada coisa…)

Algo muito importante de se registrar são os nomes. Além dos já citados temos ainda: Grampola (a quem trato pela carinhosa alcunha de Granloca, pois tem mania de perseguição e, quando ouve fogos de artifício, surta instantaneamente – Mora Fuentes tenta acalmá-la: “São eles, Grampola, eles te encontraram, vieram te buscar!”); Laika (atualmente em Marduk, tinha olhos humanos); Mukama Nakama (nome originado da novela global Força de um desejo); Amanda; Helena (a princípio foi difícil me acostumar a tratar uma cachorra pelo nome de minha mãe); Linda; Bien Nègre (em Marduk); Pixotinha (cachorra do Mora Fuentes que também já partiu pra Marduk); Chaya Loca (do sânscrito mundo das sombras); Lira Dinda; etc., etc. Junto ao quarto de hóspedes, há um canil no qual se encontram três cães. Quando um casal de amigos veio nos visitar, ensinei-lhes dois mantras que deveriam usar caso os cães latissem à noite. Ela deveria repetir em tom monótono “la-li-li-la-la-li-li-la-la-li-li-la-la…” e ele “da-pan-da-pan-da-pan-da-pan-da…”. No dia seguinte estavam embasbacados: funcionava mesmo! E eu: “claro, né, vocês estavam repetindo o nome dos três: Lilí, Lalá e Panda…” Uél, existem ainda os cães míticos – há muito desaparecidos – dentre os quais cito o Duque. Duque era um dentro de casa, outro fora. Sim, era um dos únicos a sair desta propriedade, durante a noite, para com seus asseclas aterrorizar a vizinhança. Segundo Mora Fuentes, muitos de seus seguidores saíam para nunca mais dar as caras. Duque, com ar inocente, parecia esconder algum segredo. Aparentemente, morreu envenenado. Mas há controvérsias. Líderes subversivos sempre perecem sob circunstâncias inexplicadas. Talvez a CIA tenha uma resposta.

Não quero transformar este artigo num histórico de todos os cães que estão ou já passaram por aqui, ou em coluna social canina para cadelinhas de novas-ricas. Aliás, estas senhoras não sabem o que é um cachorro. Da mesma forma que um homem, um cão só mostra seu verdadeiro caráter em relação com seus semelhantes, e não quando vive como ornamento ou distração de ociosas. Senão vejamos: Hilda termina de almoçar e coloca as sobras de seu prato para que Cavalinha, sobre a mesa, termine de comê-las. Cavalinha é uma cadelinha nanica que treme como se tivesse um mal de Parckinson. Toda submissa, com cara de fazer pena, arrasta-se até o prato e põe-se a comer. Eis que pula pra cima da mesa a Chin-Chin, mais conhecida como Coitadinha ou, segundo Mora Fuentes, Fedência (devido ao bafo). Pronto, Cavalinha solta seus demônios ocultos e rosna pra coitada da Coitadinha com insuspeitada ferocidade. É instantaneamente sincera. E assim, com o tempo, vamos localizando diversos vícios, manias e falhas de caráter nos demais. Assim como não existe o bom selvagem, tampouco há o bom animal. É fácil registrar as invejas, ciúmes, antipatias, interesses, dissimulações e, claro, afeições e amores. A comida e o sexo podem pirar o animal. Sabemos disso por experiência própria. O isolamento então, nem se fala. Todo cachorro pertencente à elite da casa, quando é mandado ao canil, tenta fugir de todas as formas. Já vi saltarem muros e grades de mais de dois metros. Os excluídos, os que nunca estiveram na casa e portanto “desejam” menos, não devem compreender essas fugas mirabolantes. (Desculpe a antropomorfização.) Agora, Hilda, do alto de seu conhecimento da Palavra, resume assim seu amor pelos cães: “Gosto deles porque não falam…” Sim, por mais que haja antipatias entre este e aquele, não podem fazer fofocas, conspirações, calúnias, etc. É tudo na lata, na cara dura. No entanto, tampouco guardam rancor se os insultamos. Só não esquecem agressões físicas. E Hilda sabe o quanto a palavra é superior à espada. Esta atinge a todos. Aquela fere mais fundo, só atingindo aos racionais, àqueles que realmente tem um esconderijo no porão da mente. E pra nós que vivemos a época das Revelações, nada como a companhia de quem não tem nada de mais a revelar.

Notas:

1 – Uma certa atriz global, ao visitar a Hilda, entrou num estado catatônico antes mesmo de abandonar o taxi. A Hilda me pediu para chamá-la e ela me disse: “Tenho pânico de cachorros! Tô até trabalhando isto com meu psicanalista”. E eu: “Seu psicanalista vai ficar orgulhoso se você for lá pra dentro…” Dois minutos depois, o olhar dissimulado, lá estava ela junto aos cães e à Hilda, de quem ainda ouviu: “De homem você não tem medo, né? Homem também tem pêlo…” (volta)

2 – Digo em média porque há uma espécie de rodízio, sempre há cães indo e voltando do xadrez, o cio é considerado contravenção e o ato de roer pés de mesa, controle-remotos e almofadas constitui crime. Morder a Hilda é crime hediondo e, por enquanto, não há notícias de tal ato. (volta)

3 – Edson Costa Duarte, amigo da escritora e estudioso da sua obra. (volta)

4 -Existem muitas funções. A mínima e gordinha Aninha, por exemplo, é um detetor de presenças. Impossível alguém se aproximar sem que ela dê um escandaloso alarme. Segundo Mora Fuentes, no quarto de quem ela dorme, Aninha também ronca como um Zidane. (volta)

(Artigo publicado originalmente no site www.NO.com.br em 14 de Abril 2000.)

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