Humanose

Meu amigo Ricardo Calaça, antropólogo e documentarista com quem dividi um apartamento na UnB, pode ter, na minha humilde opinião, péssimas opiniões políticas – acha que o Evo Morales está certo em roubar a Petrobrás, que devemos votar nulo, que os EUA são uns imperialistas do mal, etc. – mas é impossível negar: o Ricardo é um ótimo patafísico. Na Unb, por exemplo, ele vivia esquecendo o leite no fogão. Várias vezes, ao sentir cheiro de gás, tive de descer do mesanino para desligar a boca cujo fogo já havia sido apagado pelo leite derramado. Eu não ligava muito quando o leite era dele. Mas ficava grilado quando era comprado em sociedade. Um dia, ele fez de novo: quase metade do leite fugiu pelas bordas da leiteira, apagando novamente a chama. E olha que eu acabara de dizer: “Ricardo, deixe esses discos e não se esqueça do leite que você botou pra ferver, cara. Que mania de leitinho quente..” Depois, ele já botando o leite que sobrou numa caneca e eu puto de raiva: “Pô, meu, precisa ferver o leite? É pasteurizado, não é de fazenda.” E ele, com aquele seu sorriso cínico típico: “Yuri, você não entende nada de leite, rapaz. A gente precisa deixar derramar sempre. Você e a indústria dos laticínios acham que os germes morrem com a mudança de temperatura, mas eles morrem mesmo é na queda…” E tecia mil teorias a respeito da enorme altitude que a lateral duma leiteira tem diante das pequeninas bactérias e semelhantes.

Pois é, lembrei desse caso porque, neste último final de semana, as bactérias voltaram à baila. Estávamos na casa dum amigo comum, o advogado Rodrigo Lustosa, e o Ricardo me narrava a viagem que o Weber, um amigo dos tempos da UnB, fizera à Índia. O cara estava sempre preocupado com a comida porque nenhum lugar parecia ser higiênico o bastante. Um dia, diante do Taj Mahal, comprou um almoço mas teve de abandoná-lo e fugir dos assaltantes, aliás, um bando de macacos. Sim, macacos de verdade. Em pleno Taj Mahal. O cara, com receio de bichos microscópicos, teve problemas mesmo é com os macroscópicos. Mas nada lhe impressionou tanto como a visão do Rio Ganges. Montes de peregrinos lavando a poeira e o cascão de centenas de quilômetros de andanças, corpos sendo cremados às margens (a cinza voando em direção às águas), gente comendo e molhando a comida na água, provavelmente muita gente urinando porque – puts, grila – não é possível que mijem nas piscinas de Caldas Novas e centenas de milhares de pessoas não mijem no Ganges. Por que não? Se a teoria de beber a urina matinal é coisa de indiano, que mal eles veriam em mijar no Rio? Enfim, o Weber não se sentiu muito atraído por aquela água. E estranhou aquela história de que pouquíssima gente adoece ali, o que deu até mesmo origem a essa lenda de que há algum tipo de proteção energética natural, afinal é um rio sagrado. Obviamente, nosso patafísico Ricardo tinha sua teoria: “As pessoas são tão inocentes. Não percebem o que está debaixo do próprio nariz. É claro que as bactérias do Ganges estão doentes: elas estão com humanose. Vocês acham que elas aguentariam aquele monte de faquir pelado, sujo pra caramba, o ano inteiro sem qualquer dano à sua saúde? Dá até pra imaginar a bacteriazinha falando: ‘mamãe, tô com uma dor de barriga!’ E a dona bactéria: ‘Já não te falei que não é pra você ficar nadando em volta dos seres humanos? Bem, feito, agora está com humanose…'”

O Ricardo irá concorrer com um documentário no Festival de Cinema de Brasília. Quem estiver por lá, compareça.

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