Guimarães Rosa e o Sobrenatural

Antes de morar dois anos e uns quebrados com a escritora Hilda Hilst, eu costumava me preocupar com minha atração pelo sobrenatural ou fantástico, pelo místico e religioso. Temia que isso viesse a atrapalhar minha (ainda) incipiente e (ainda) rastejante carreira literária. (Preconceito incutido por meus amigos que, se entendem muito de literatura, não entendem de escritores nadica de nada.) Mas descobri que esses assuntos sempre foram os que mais motivaram a Hilda a criar. E agora encontrei esse livro do Jorge Rizzini, Escritores e Fantasmas. Diversas anedotas que eu já ouvira — algumas da própria Hilda — a respeito dos mais diversos autores se confirmam ali através de declarações de próprio punho: Goethe, Dickens, Fernando Pessoa, Yeats, Rui Barbosa, Olavo Billac, Fagundes Varela, Monteiro Lobato, Maupassant, Visconde de Taunay, Augusto dos Anjos, Victor Hugo, Rilke, Musset, Conan Doyle, Zola, etc., etc. Teria sido pretensão enooorme da minha parte acreditar que eu fora o primeiro literato a sonhar com contos inteiros, ver gente onde não há nada, passear fora do corpo. Veja, por exemplo, o artigo citado por Rizzini, publicado por Guimarães Rosa em sua coluna de O Estado de Minas (edição de 26/11/1967):

“Tenho de segredar que — embora por formação ou índole oponha escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica — minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. Dadas vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informações urgentemente necessárias.

“No plano da arte e criação — já de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza — decerto se propõem mais essas manifestações. Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir. A Buriti (NOITES DO SERTÃO), por exemplo, quase inteira, ‘assisti’, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de Bois (SAGARANA), recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerara como definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do rio (PRIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão ‘de fora’, que instintivamente levantei as mãos para ‘pegá-la’, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. Campo geral (MIGUILLIM E MANUELZÃO) foi caindo já feita no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça e receio de começar de fato um conto, para o qual só soubesse um menino morador à borda da mata e duas ou três caçadas de tamanduás e tatús; entretanto, logo me moveu e apertou, e, chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes. O tema de O Recado do Morro (NO URUBUQUAQUÁ, NO PINHÉM) se formou aos poucos, em 1950, no estrangeiro, avançando somente quando a saudade me obrigava, talvez também sob razoável ação do vinho ou do conhaque. Quanto ao GRANDE SERTÃO: VEREDAS, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou corrente muito estranhas.

“Aqui, porém, o caso é um romance, que faz anos comecei e interrompi. (Seu título: A Fazedora de Velas.) Decorreria, em fins do século passado, em antiga cidade de Minas Gerais, e para ele fora já ajuntada e meditada à massa de elementos. O teor curtido na idéia, riscado o enredo em gráfico. Ia ter, principalmente, cenário interno, num sobrado, do qual — inventado fazendo realidade — cheguei a conhecer todo canto e palmo. Contava-se na primeira pessoa, por um solitário, sofrido, vivido, ensinado.

“Mas foi acontecendo que a exposição se aprofundasse, triste, contra meu entusiasmo. A personagem, ainda enferma, falava de sua doença grave. Inconjurável, quase cósmica, ia-se essa tristeza passando para mim, me permeava. Tirei-me, de sério medo. Larguei essa ficção de lado.

“O que do livro havia, e o que a ele se referia, trouxe-se em gaveta. Mas as coisas impalpáveis andavam já em movimento.

“Daí a meses, ano-e-meio, ano — adoeci; e a doença imitava, ponto por ponto, a do Narrador! Então? Más coincidências destas calam-se com cuidado, em claro não se comentam.

“Outro tempo após, tive de ir, por acaso, a uma casa — onde a sala seria, sem toque ou retoque, a do romanceado sobrado, que da imaginação eu tirara e decorara, visualizado freqüentando-o por ofício. Sei quais foram, céus, meu choque e susto. Tudo isto é verdade. Dobremos de silêncio.”

(Escritores e Fantasmas, Jorge Rizzini, Ed. Correio Fraterno, 1992.)

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